Sei que não há dinheiro para a Educação. Compreendo perfeitamente que teria sido uma despesa perfeitamente despropositada adquirir – para todas as salas onde elas não existem – carteiras individuais. E não me passaria pela cabeça que o senhor primeiro-ministro tivesse dado ordens para que as turmas fossem divididas e houvesse, vejamos, no máximo vinte alunos por turma. Que despesismo desnecessário!
Logo, as salas são as mesmas do ano letivo anterior e o número de alunos, em regra, também. O que mudou? O cansaço – nosso e deles – verificável a olhos nus logo no final da primeira semana de aulas. E sabe por que razão este surge mais cedo desta vez? É consequência do pano que nos tapa a boca. E tende a tapar-nos também as emoções. Estou deveras preocupada, senhor primeiro-ministro António Costa. E já antes lho tinha dito de forma muito clara e quiçá agressiva, como fui acusada por tantos seguidores seus quando lhe tentei explicar no debate da TVI do passado ano que os professores mereciam de si, e das políticas educativas em geral, um pouco mais.
Desta vez, é diferente. Sabemos que não podemos parar. Sabemos também que os professores fazem parte, neste momento, da linha mais frontal de risco de contaminação por Covid-19 pelo simples facto de que estamos fechados em salas pequena com grupos grandes de alunos. E é com orgulho que lhe digo, senhor primeiro-ministro: salvo muito poucas exceções, devidamente justificadas, estamos lá todos! Dos professores mais jovens aos mais velhos, com filhos pequenos e/ou pais idosos, estamos lá todos. Voltámos à escola com o nosso profissionalismo e a vontade de fazer aquilo que nos levou à profissão docente: estar em contacto com os alunos na sala de aula ou fora dela, partilhar vidas, ensinar a aprender. Porém, é com enorme tristeza que verifico a passividade com que todos aceitamos tudo. No que aos alunos diz respeito, receio mesmo que se tornem seres apáticos e ausentes, aceitando sem questionar regras e limitações de toda a espécie. Após vários meses encerrados em casa, deveriam ter tido a oportunidade de, na segurança de pequenos grupos, ser intervenientes ativos e pensantes, enquanto indivíduos em crescimento e em aprendizagem permanentes. Não sei se tal será possível, senhor primeiro-ministro.
No primeiro dia de aulas do primeiro período deste estranho ano letivo, chegámos à escola munidos das nossas máscaras e dos nossos frascos de álcool gel. Na pasta, os manuais, os marcadores para o quadro e as nossas pen drive. Dentro de mim, carregava uma enorme vontade de regressar às aulas presenciais e ao contacto com os alunos. Começaria o ano letivo com uma aula de Português a uma turma do 12º ano de escolaridade. À estranheza perante a longa fila de muitos – tantos – alunos perfeitamente alinhados para entrar no espaço escolar, seguiu-se uma sensação de desconforto por sermos vinte e nove no total dentro da sala – mascarados e apertados num espaço demasiado pequeno para manter o tão falado distanciamento social (a que prefiro chamar distanciamento individual). Porém, rapidamente a sensação de desconforto se dissipou, substituída por esta simples constatação: os meus alunos estavam felizes por regressarem à escola – mesmo sentados em sentido e de boca tapada – e aparentemente muito mais calmos e atentos do que em anos anteriores. E eu também! Pairava na sala uma estranha atmosfera de esperança, misturada com receio e incerteza. Stora, acha que vamos voltar para casa? Ai, stora, por favor diga que não voltamos a ficar confinados. Stora, tivemos saudades suas. Stora, o que vamos dar este ano? Stora, pode vir perto de nós, nós não temos Covid… Stora, eu já não aguentava mais estar em casa. Stora, foram três meses perdidos. Stora, passei três meses a dormir e a jogar. Stora, já não me lembro de nada do que aprendi. Stora, stora, stora…
Saí da primeira aula incomodada e a pensar no futuro. E assim tenho passado a semana, senhor primeiro-ministro. Ouço as notícias diariamente e constato o aumento consistente de casos de infeção. Temos centenas de alunos a entrar e a sair da escola; vemo-los a socializar, a por em dia as conversas adiadas; observamos que alguns – muitos – retiram a máscara mal atravessam o portão da escola; assistimos a contactos de proximidade e a entrar e a sair do autocarro; há alunos com ataques de pânico a quem temos de apoiar escondidos por uma máscara. E há alunos novos a quem ainda não vi o rosto.
No fundo, o que eu quero dizer-lhe Senhor Primeiro-Ministro, é que desde o início das aulas, a possibilidade de estarmos a criar uma geração de seres amorfos e temerosos que passam os seus dias sentados numa cadeira a olhar para um professor ou para um ecrã, calados, quietos e adormecidos, assusta-me. Hoje, mais do que em algum outro tempo ou lugar, urge fazer dos alunos seres pensantes, pequenos pesquisadores, criar novos modelos, parar de replicar o antigamente, criar alternativas dentro e fora da sala de aula, mudar a nossa visão da escola e passá-la aos alunos e aos pais. Não quero pactuar com a possibilidade de alimentar esta pandemia do medo. Mas muito menos quero que os meus alunos corram riscos de saúde.
Tenho ouvido repetidamente nos últimos dias que o futuro é incerto. Respondo simplesmente que sempre foi. O futuro é, pela sua natureza, desconhecido, imprevisível, incerto, desconhecido… E nestes tempos que atravessamos, devemos admitir que o futuro se apresenta ainda mais incerto do que antes. Quero ensinar aos meus alunos que viver é um risco e que quanto mais cedo eles aprenderem a lidar com ele melhor preparados estarão para a vida. Mas diga-me, senhor primeiro-ministro, precisávamos mesmo de ser 29?