A aula já tinha começado há cerca de vinte minutos quando aquele aluno entrou pela sala dentro de rompante e, sem qualquer pedido de desculpas pelo seu atraso, se dirigiu a mim em tom agressivo usando uma linguagem corporal correspondente. E disse, ameaçador, num ar de quem não espera qualquer tipo de repreensão a seguir: Veja lá mas é se não me marca falta que eu já tou quase chumbado…
Engoli em seco e, antes de responder, repus a ordem na sala e continuei a aula. No início da minha carreira talvez tivesse agido de forma totalmente diferente mas, nesta fase em que me encontro, consigo, felizmente, respirar fundo, contar até dez e não reagir impulsivamente. Mandei-o sentar e disse-lhe, com o tom mais calmo que consegui encontrar, que falaríamos no final da aula. Ele levantou os olhos para mim admirado, como quem pensa que raio teria eu para lhe dizer. E assim foi. Quando todos saíram, ficámos os dois, num frente a frente feito de desequilíbrios. Eu repreendi-o. Ameacei com a falta. Chamei para a mesa todas as regras que ele insiste em rejeitar. O meu aluno, aparentemente agressivo, começou a falar com uma velocidade estonteante e, quanto mais falava e se emocionava, mais gaguejava. Convoquei todos os Deuses do ensino para resolver a situação a bem, quando ouço, já com voz mais calma: “Só cheguei agora porque fui visitar a minha tia à prisão”…
Inicialmente, o aluno fora mal educado, insolente, quebrara as regras de sala de aula e não manifestara qualquer arrependimento quanto a isso, muito pelo contrário… Eu estava a par deste seu padrão de comportamento que já tinha provocado conflitos noutras disciplinas, com outros professores. Mas eu sabia também que este aluno sofria de gaguez, embora em pura verdade nunca me tivesse apercebido da gravidade da mesma (porque este aluno, talvez como estratégia para se proteger dos colegas, fala pouco nas aulas e evita o mais possível apresentar trabalhos orais). Este processo em espiral poderia ter atingido proporções desmesuradas caso eu não estivesse, na posse de um enorme bom senso naquele dia ou não tivesse tentado perceber o conflito emocional que o aluno trazia dentro de si.
Há dias difíceis na vida de um professor mas eu senti que era altura de agir em conformidade com os meus princípios, tentando ir de encontro a este aluno, um ser emocional cheio de carências e marcado por acontecimentos, factos, vivências e experiências de que era o grande intérprete e aos quais muitos de nós não teríamos sobrevivido em sanidade. Se cada um de nós, indivíduos escolarizados, fizer uma retrospetiva pelo seu percurso escolar, nele encontrará algumas marcas – mesmo que por vezes muito ténues – dos professores que teve, da relação pedagógica que com eles estabeleceu e do que foi a sua passagem pela escola. Muitos de nós ficámos rotulados por colegas e professores e, certamente, os rotulámos. Muitos de nós nos antagonizámos com este ou com aquele professor e também demos e recebemos em troca maior ou menor empatia. O que eu quero dizer com isto é que entendo a relação entre professor e aluno como uma das formas privilegiadas de desenvolvimento pessoal – por sua vez, um importante meio de inserção social, a meu ver – dos indivíduos nela envolvidos. E a comunicação, seja qual for a linguagem utilizada para que ela aconteça, é um forte elemento de troca (e de conflito também), devendo o professor atender às situações interacionais e ao contexto cultural das indivíduos em presença.
Ao usar a empatia na comunicação com este aluno inicialmente insolente, percebi mais uma vez a importância crucial do papel do professor na vida dos alunos e da linguagem por nós utilizada enquanto fator facilitador ou obstaculizante de relações interpessoais promotoras de confiança, de desenvolvimento pessoal e de capacidade de abertura dos indivíduos a si próprios e aos outros. Sou professora. Tenho uma profissão de afetos. Mais. Sou professora de Português. A minha matéria-prima são as palavras. É com elas que construo as aulas, as relações e as repreensões. O meu aluno continua a gaguejar mas saiu da minha aula sem qualquer sinal da agressividade com que ali entrou. E, acredito, não voltará a enfrentar um professor da mesma forma…
Deixei a aula mais feliz. Desprivilegiem-se os afetos, os significados e os medos resultantes da perceção que cada um tem do mundo e das interações que com ele estabelece e teremos criado uma escola morta.