Se analisarmos os últimos séculos da história da Medicina, vemos que houve durante todo este tempo um denominador comum na sua prática: os “curadores”. Esta designação baseava-se no papel que certo tipo de pessoas assumia como agentes de diagnóstico/tratamento de doenças – o que hoje designamos por clínicos (aqui entendido não só pelos médicos mas também farmacêuticos, enfermeiros, etc.).
Com efeito, estes precursores das actuais profissões da saúde existiram no Egipto antigo (dez mil anos antes da nossa época), mas também na altura em que se tentou dar um corpo científico à prática médica: na Grécia clássica, na China e na Índia. As figuras médicas durante todo este tempo – por exemplo Hipócrates na ilha grega de Cós (400 anos AC), Galeno em Alexandria (129 DC), Paracelso em Estrasburgo (séc. XV) e William Osler na América e Inglaterra (séc. XIX) – representam com a sua prática a luta contra o sofrimento e a morte, os grandes e perenes objectivos da Medicina.
A história da Medicina está cheia de grandes individualidades que, sós ou em grupo, criaram o corpo científico e técnico-profissional que hoje reconhecemos como o padrão da prática clínica moderna. Todos os estudos publicados nos últimos 150-200 anos (com especial relevo nos últimos 50-80 anos) serviram principalmente para informar os médicos, suportando as decisões diagnósticas, terapêuticas, prognósticas, etc. da sua responsabilidade. Por outras palavras, toda a informação de base científica clínica – obtida através de meios experimentais ou outros – destina-se a suportar as decisões relevantes para os doentes.
Vem esta pequena introdução a propósito de uma notícia que passou relativamente despercebida, mas que nos parece de grande importância para todos nós: a recente aprovação pela Food and Drug Administration – a agência de aprovação de tecnologias da saúde dos EUA – de um programa informático de inteligência artificial (IA) para diagnóstico das fracturas do pulso em adultos (https://www.fda.gov/newsevents/newsroom/pressannouncements/ucm608833.htm, acedido em Setembro 2018).
Designado como OsteoDetect, este programa informático baseia-se em técnicas de inteligência artificial (IA) para analisar radiografias bidimensionais em casos de suspeitas de fracturas distais do pulso. Desenhado para ser utilizado em serviços de urgência, de ortopedia e em cuidados primários, o programa não só identifica os exames anormais, como realça no raio X o local potencial da fractura, ajudando o médico no seu diagnóstico. A técnica de IA aqui utilizada é a de machine learning (aprendizagem de máquina), em que o computador “lê” previamente milhares de radiografias classificadas como normais ou com fracturas e aplica esse conhecimento aos novos exames. Esta técnica foi de resto já aplicada com sucesso no diagnóstico da retinopatia diabética (JAMA 2016;316:2402-2410) e de cancro da pele (Nature doi:10.1038/nature21056).
O desenvolvimento desta técnica diagnóstica, combinando dados informáticos e pensamento clínico é de grande importância, na medida em que a precisão da detecção das fracturas aumenta significativamente, quando comparada apenas com a análise humana. A utilidade é evidente: basta por exemplo pensar no doente politraumatizado e da difícil detecção da totalidade das fracturas presentes.
Este é um feliz exemplo de uma colaboração homem-máquina, sendo paradigmática da introdução de técnicas de IA na saúde. Devemos esperar no futuro próximo desenvolvimentos marcados nesta área tecnológica, com programas diagnósticos de apoio à decisão cada vez mais precisos e consistentes, e até esquemas algorítmicos de tratamento individualizado em doentes oncológicos, cardiovasculares, etc. segundo o seu risco de base e a presença de doenças concomitantes.
É claro que estes desenvolvimentos tecnológicos apresentam problemas a vários níveis e que deverão ser discutidos: o primeiro é o impacto negativo nas capacidades médicas, isto é, na diminuição da competência médica em áreas onde as máquinas estão mais desenvolvidas e em que o seu uso é generalizado. Isto mesmo já foi demonstrado em estudos sobre leituras de mamografias (Med Decis Making 2013;33:98-107) e de eletrocardiogramas (J Am Med Inform Assoc 2003;10:478-483), em que os clínicos – aos correr do tempo de utilização destes programas – deterioravam a sua precisão diagnóstica. O segundo é que uma imagem é apenas base de informação, isto é, constitui os dados para fazer um diagnóstico contextualizado. Se a máquina fizer um diagnóstico baseado em dados não disponíveis ao médico, esse diagnóstico pode ser pura e simplesmente falso no contexto daquele doente específico: por exemplo, em dois doentes com dor no peito típica de ataque cardíaco, em que um é uma jovem de 20 anos perfeitamente saudável e outro é um homem de 67 anos com cinco factores de risco para doença coronária, se se obtiverem dois resultados idênticos nos respectivos ECG estes são interpretados pelo médico de maneira totalmente diversa, porque ele sabe que a hipótese da jovem estar a ter um ataque cardíaco é muito baixa (e o resultado é o que chamamos um falso-positivo), mas a do homem é muito alta (um verdadeiro positivo). Ora uma máquina leria estes dois ECG exactamente da mesma maneira, diagnosticando um ataque de coração nos dois casos. Finalmente, existem aspectos éticos a considerar, quer sejam as consequências práticas de um funcionamento defeituoso da máquina tomando decisões enviesadas (tal como os humanos, mas que são difíceis de detectar) até programações que recomendem certas vias de decisão não necessariamente baseadas na evidência científica, mas nos interesses de outros actores da saúde (indústria farmacêutica, gestores, etc.). E, finalmente, há duas questões fundamentais a levar em conta: que efeitos terá a utilização destes softwares na relação médico-doente? E quem se deverá responsabilizar, caso haja um resultado clínico desfavorável devido a um erro feito pelo programa?
Independentemente destas reservas, os sistemas de IA vieram para ficar. Bem utilizados, deverão juntar valor ao acto médico, reduzindo a incerteza diagnóstica e aumentando a precisão terapêutica. Mas deverão ser cuidadosamente monitorizados no seu funcionamento e, mais importante, nos seus resultados nos doentes.