Fui para férias com esta frase de uma colega a martelar-me nos ouvidos: Ainda bem que lhe dei negativa. Eu sabia que ela não se ia safar no exame nacional.
Depois dos exames, alguns alunos terão conseguido melhorar as suas médias para garantirem o acesso à universidade mas a grande maioria não terá tido o mesmo mérito ou a mesma sorte. Porque um exame é mesmo isso: uma questão de sorte. São atirados para dentro de uma tômbola vários conteúdos que os alunos deveriam ter aprendido ao longo do ensino secundário e que, depois de andarem à volta, vão saindo um a um em forma de exame nacional.
Enquanto professora de Português e classificadora da prova 639 (Português, 12º ano), este ano corrigi 50 provas na primeira fase, a maioria das quais constituída por 1 folha de teste correspondente a 4 páginas inteirinhas e, algumas vezes, uma segunda folha com mais 1 ou 2 páginas preenchidas (quase nunca ultrapassando as 6 páginas a corrigir). Na segunda fase, fui presenteada com mais 23 provas, portanto classifiquei 73 exames de 12º ano a custo zero para o Ministério da Educação. Se, por alto, e após muito treino, consegui classificar um exame de Português contendo uma composição obrigatória com o mínimo de 200 e o máximo de 300 palavras em cerca de 2 horas, gastei um total 146 horas (excluindo, claro está, todo o tempo gasto na análise dos critérios de classificação, nem sempre claros, nem sempre óbvios, nem sempre 100% objetivos). Claro que tenho de retirar daqui as 35 horas semanais do meu horário e multiplicá-las pelas duas semanas que me foram atribuídas para a correção. Sobram apenas 76 horas de trabalho que dei de coração aberto ao meu país para essa insubstituível tarefa nacional que é a avaliação escolar. Nada de extraordinário, portanto!
E foi assim que ao receber as 23 provas da segunda fase, disse para com os meus botões: desta vez tens tinha a vida facilitada. Para quem corrigiu 50 exames, 23 parecem canja! Puro engano! Ou porque os alunos apostaram na recuperação de notas ou porque o exame lhes foi mais fácil, entre 23 exames apenas 1 aluno utilizou apenas 1 folha. Quer isto dizer que 22 alunos utilizaram 2, por vezes 3, o que equivale a 8 ou 12 páginas de escrita… Neste momento, o leitor estará a pensar nas razões deste meu relambório em pleno agosto. E tem razão! Eu devia estar estendida na areia a ler a única obra de Saramago que me falta ler mas não, ando aqui às voltas com o papel da avaliação escolar nas nossas vidas. Nossas, sim, porque a avaliação escolar tem efeitos muito para além da vida dos professores e dos alunos. Senão vejamos!
As potencialidades formativas e o potencial pedagógico da avaliação escolar são desvirtuadas a cada passo pela função de certificação que a sociedade exige. Quase meio século depois das mudanças introduzidas no sistema educativo português pela revolução de abril e pelos ideias de democraticidade do ensino, a avaliação escolar continua a ser um ato pontual e solitário, altamente discriminatório e praticamente apenas de caráter sumativo, o que vem confirmar cada vez mais a distância existente entre os pressupostos teóricos e as verdadeiras práticas pedagógicas. Que não haja dúvidas: a avaliação escolar continua a revelar o que de pior existe no nosso sistema educativo. Ouso acrescentar ainda mais: ninguém saberia o que fazer sem ela. Mas a avaliação revela a grande contradição entre o que a escola e a aprendizagem deviam ser e o que são, entre a construção de novas mentalidades e formas de estar e de agir e a reprodução dos valores do ensino tradicional e de toda uma sociedade.
De facto, a avaliação joga um papel determinante na vida dos alunos e, sejamos sinceros, na vida dos professores também, sem a qual muitos sentiriam perder algum poder. Esta “linguagem da nota” é ainda o pouco que resta dos últimos resquícios de poder ao professor, sem o qual muitos de nós ficaríamos totalmente perdidos. Mas que informação veicula sobre um indivíduo um momento de exame? E pode um simples algarismo definir as competências e capacidades de um aluno?
A avaliação é, por natureza, algo inacabado e sempre em construção.
Um exame, uma prova ou um teste interrompem este processo e podem, em casos limite, interromper toda uma vida escolar (possuo em carteira vários exemplos disto que afirmo). É esta lógica de seleção e não de orientação que permanece na nossa escola e na nossa sociedade. Mas saberíamos viver se as avaliações escolares abandonassem o seu exclusivo teor de certificação e passassem a funcionar como a bússola que guia as aprendizagens e a vida?
Para quando uma escola onde a avaliação seja utilizada numa perspetiva evolutiva e dinâmica de resolução de problemas? De reflexão perante a complexidade da nossa existência? De urgente adaptação aos novos contextos?