Não dói há mais de um mês. Não reforcei a medicação, pelo contrário, larguei a “bagagem”. Nem o chamado desmame fiz. Aconteceu. Esqueci-me, como quem se esquece de tomar a pílula. E a seguir experimentei não tomar e não doeu. Não voltei aos anti inflamatórios e continua a não doer. Não tenho dores nos ossos porque não parti nada e o tempo até tem estado instável, mas tem deixado as mazelas das fracturas antigas sossegadas. Não tenho dores nas articulações porque… não sei! Mas de uma coisa eu sei, nunca estive tanto tempo sem dores nenhumas. Escrevo outra vez, como que a convencer-me disto: não dói há mais de um mês.
“Pshiuuuu! Não digas isso alto outra vez que ainda dá azar”, diria alguém. Sim, porque viver um mês assim é uma “sorte”. É melhor não contar, nem os dias nem o que está a acontecer. Porque isso pode dar uma falsa sensação de realidade, criar expectativas em mim e se… e se amanhã acordar com dores? Continuarei a sentir-me abençoada por ter vivido este tempo. E pelo que há-de vir, seja aquilo que for. É isto que espelha a maneira como sempre lidei com as dores e como lido agora com a sua ausência. Faz parte de mim, não me define.
O que quero que me defina é a minha atitude perante as dores. E vale para todos os tipos de dor. O que quero que me defina é a minha atitude quando sou confrontada com a minha falta de autonomia, que em nada tem que ver com o sentir-me mais ou menos livre. O que quero que me defina é a minha atitude no momento em que preciso de aprender a esperar pelo momento certo que eu não controlo. E a propósito disto, lembrei-me do título de um filme: “Vestida para matar!”, associado à metáfora que dizer isso ainda hoje representa. Já eu, no outro dia, tive mesmo de dormir vestida para aprender!
Totalmente despida de vergonha do que aconteceu, conto-vos o que foi um “valente azar”, na possível avaliação de quem vê isto da vida como uma sucessão de acontecimentos aleatórios. Era véspera de um dia importante para mim. Uns dias antes, tinha comprado um vestido novo para estrear nessa ocasião. Era o meu número, portanto pendurei-o, mas não o experimentei. Estava a preparar-me para ir dormir, quando olhei para ele e pensei: afinal não tenho tudo preparado para amanhã. E se o vestido não me serve? Mais vale saber já hoje, do que ter uma surpresa amanhã de manhã e começar o dia aborrecida. Ao menos tenho tudo “controlado”. Achava eu e é o que achamos todos, afinal nós é que controlamos isto.
Despi o pijama, à excepção de uma camisola interior justa ao corpo. Vesti o vestido novo por cima e fui ver-me ao espelho. Incrível, assentava-me como uma luva! Até parecia que tinha sido feito para mim. Sorri, como que a elogiar-me, ainda ao espelho, e à minha decisão de ter comprado aquele vestido. Pronto, já podia ir deitar-me, pois dali a poucas horas estaria de pé outra vez (salvo seja!) para um dia cheio de emoções. Fiz a minha manobra habitual, com os meus braços curtos e deformados para despir o vestido e… ups… então? O vestido não queria sair! Sem fechos, botões, aberturas, nada que me pudesse facilitar. Parecia que estava enfiada dentro de uma camisa de forças. O maldito vestido entrou facilmente, só que para sair só tinha duas hipóteses. Estragá-lo, com a ajuda de um objecto cortante. Ou recorrer à ajuda de outra pessoa para, literalmente, me içar os braços e puxar o vestido. Onde estava essa pessoa? Eram três e tal da manhã, eu vivo sozinha e… quem me mandou a mim ter ido vestir o vestido àquela hora? Num impulso, fui à cozinha, peguei na primeira faca que encontrei e voltei para a frente do espelho. O cenário era hilariante e felizmente não durou mais do que alguns minutos: eu a olhar para mim, com uma faca em riste, quase maior do que eu, prestes a “esfrangalhar” um vestido que entrou mas não saía. E se me “esfrangalhasse” a mim? Com o jeitinho que eu tenho para manusear facas, era o mais certo!
Pousei a faca. Baixei os braços e deixei de lutar contra aquilo que não podia controlar. Rendi-me sem soltar uma lágrima ou iniciar uma depressão. Soltei uma gargalhada, pela minha figura. Agradeci a lucidez de ser capaz de aceitar que aquele bendito vestido tinha vindo afinal para me ensinar muito acerca do que significa a dependência, a paciência na espera e a beleza que há em pedir ajuda. Sorri outra vez para o meu reflexo e continuava a sentir-me bonita. Vesti o pijama por cima do vestido e fui para a cama. É que no dia seguinte alguém iria levantar-me os braços, como tem levantado sempre que me canso nas lutas, e o vestido continuaria a ser apenas um vestido, que já nem faria parte de mim.
Eu sou aquela que despida de preconceitos assume: preciso dos outros e sou abençoada por isso. Antes eles que comprimidos!