O mar salgado que nos rodeia tem moldado a nossa existência e, como não podia deixar de ser, a nossa comida, expressão máxima da cultura mediterrânica. Não admira por isso que o garum português (preparado de peixe, preferencialmente gordo e inteiro, ao qual se adicionava sal e condimentos para o preservar da decomposição bacteriana) saído da costa algarvia ou da península de Troia fosse o petisco preferido do império romano há mais de 2000 anos. Aliás pensa-se que no estuário do Sado existiam os maiores tanques de salga conhecidos do mundo romano.
São, pois, dezenas de gerações a salgar, a apurar técnicas de conservação e processos culinários que fazem do nosso bacalhau ou dos nossos enchidos, produtos praticamente imbatíveis no mundo gastronómico.
E quando em toda a Europa o consumo de sal se reduziu, com o aparecimento da eletricidade e generalização das cadeias de frio e da pasteurização, na zona mediterrânica, onde a revolução industrial praticamente não chegou, continuou a utilizar-se o sal… excessivamente. Como conservante, reduzindo o risco de contaminação bacteriana nos dias mais quentes, como ajudante tecnológico, por exemplo no fabrico do pão, ou como intensificador do sabor no dia-a-dia de muitas cozinhas onde o sal era barato e acessível compensando a menor frescura dos ingredientes ou a inabilidade dos cozinheiros. Ou, pura e simplesmente, respondendo ao gosto do freguês que preferia pratos “apurados”.
Mas a salga, que nos ajudou e salvou durante milhares de anos, enquanto tínhamos uma esperança de vida média até aos 30-40 anos, deixou de fazer sentido no séc. XX quando passamos a viver até aos 70 ou 80 anos. Nessa altura, percebeu-se muito rapidamente que o sal a mais na alimentação reduzia a capacidade dos rins para remover a água em excesso no nosso organismo aumentando a pressão dentro das artérias. Para se protegerem da pressão excessiva as paredes das artérias ficam mais duras e grossas reduzindo o fluxo de sangue no interior e aumentando de novo a pressão. Menos sangue no coração, no cérebro ou em qualquer outro órgão, significa menos oxigénio e menos nutrientes e risco de bloqueio do sangue originando enfarte do miocárdio, demência ou acidente vascular cerebral.
O aumento da pressão sanguínea é hoje a principal causa do desenvolvimento de doenças cardiovasculares e é responsável por 60% de todos os acidentes vasculares cerebrais (AVC). Em Portugal, existem cerca de 3,5 milhões de hipertensos, sendo os AVC a principal causa de morte. Calcula-se que por hora, 3 portugueses sofram um AVC, sendo um deles mortal. E que cada pessoa com AVC custe por ano cerca de 5800 Euros sendo que os encargos do Sistema Nacional de Saúde em Portugal Continental só com anti-hipertensores ultrapassam anualmente os 200 milhões euros.
Os números desta catástrofe económica, social e mortandade pública não tem paralelo na nossa história recente. Poderíamos dizer que quase todas as famílias portuguesas já sofreram ou irão sofrer esta tragédia.
Apesar da violência dos números e do facto de uma pequena redução no consumo diário de sal poder poupar milhares de mortes e milhões de dias de incapacidade por ano (não só na saúde vascular mas em cancros, problemas ósseos, renais…) a perceção desta realidade não é sentida pela maioria. A oferta excessiva de sal, que mata mais do que os acidentes rodoviários ou doenças infeciosas como a SIDA, é ainda hoje completamente tolerada em Portugal. Rejeita-se com facilidade um vinho com um ligeiro aroma a rolha, mas raramente uma sopa que nos pode matar. Nos restaurantes, em casa ou até nas escolas. Hoje consumimos em média, cerca de 11g de sal por dia e as recomendações da Organização Mundial de Saúde apontam para 5g por dia ou menos.
A nossa sopa caseira, a nossa pastelaria ou a comida consumida fora de casa é ainda muito salgada. Nos últimos anos, os testes realizados apontam para que a quantidade de sal consumida numa só refeição feita fora de casa possa, em muitos casos, ultrapassar metade da dose máxima recomendada diariamente e que alguns alimentos (por ex. bolachas ou produtos de pastelaria) possam conter mais sal por 100g do que produtos tradicionalmente salgados, como as batatas fritas.
O esforço feito pela indústria e pela Direção-Geral da Saúde em encontrar compromissos comuns para a reformulação da oferta alimentar com menos sal está a fazer o seu caminho, mas o cidadão deve saber que pode fazer toda a diferença neste ano de 2016 em que praticamente todos os alimentos embalados possuem no rótulo e por força da lei, a menção do sal que contêm por 100g.
Comparar rótulos é, pois, decisivo. Para quase todos os produtos alimentares à venda existem alternativas com menos sal. Por vezes, as diferenças são enormes. Como se comprova nos cereais de pequeno-almoço, nas bolachas, ou nos molhos… Basta perder um pouco mais de tempo a comparar. E rejeitar as bombas salinas presentes em alguns alimentos como o salmão fumado, em algumas sopas pré-embaladas ou em muita comida consumida fora de casa, muita dela dita gourmet… ou… então típica e de rua…mas basicamente salgada e mortal.