O jornalista de investigação italiano Eric Frattini escreveu um livro intitulado “A manipulação da verdade: operações de falsa bandeira”, em que nos dá exemplos de como os serviços secretos de várias potências realizaram, ao longo da História, operações destinadas a incriminar outro país, ou entidade, de forma a provocar uma reação. Em geral, estas operações servem para forçar uma crise política, económica ou social. Ou até mesmo para iniciar uma guerra.
A crise global diplomática, após o envenenamento de um ex-espião russo, é demasiado forçada ou exagerada para poder ser tomada como genuína, pelo menos, assim, acriticamente, como estamos a assistir. É que já vimos este filme: antes de nos solidarizarmos com o Reino Unido, independentemente de todas as alianças, convinha que os britânicos apresentassem provas mais consistentes do que aquelas que apresentaram quando nos impingiram a suposta existência de armas químicas no Iraque. Até agora, isso não aconteceu – e a comparação é óbvia. O movimento de reação diplomática baseia-se numa convicção. Não está em causa o modus operandi tradicional dos russos, desde que, em 21 de agosto de 1940, um agente seu assassinou Leon Trotsky, no México. E Vladimir Putin, que não é flor que se cheire, é capaz disto e de muito mais. Ainda por cima, seria reincidente. No entanto, à falta de melhores provas, temos de seguir a pista do móbil: a quem mais aproveita esta crise?
Eu, se mandasse nos serviços secretos britânicos ou americanos, ficaria extraordinariamente feliz com o envenenamento de Serguei Kripal e com o endereço do ónus aos russos. Visto desapaixonadamente, o crime aproveita muito mais a uma Grã-Bretanha em pleno Brexit e a uns EUA emaranhados na nuvem de suspeitas sobre a alegada mão russa por detrás do arbusto, na eleição de Donald Trump, do que aos russos, cujo único móbil seria a vingança. Esta crise pode contribuir para fragilizar e isolar a Rússia, atingindo a sua economia por via das sanções, e dividir europeus “aliados” – mas sem uma verdadeira política externa comum, muito menos de defesa… E contribui, decididamente, para aumentar o clima de tensão entre a UE e a Rússia, algo que aproveita muito mais a britânicos de saída e a americanos em guerra comercial. A fragilização da UE, as consequências para a sua economia, numa crise com a Rússia, seria música para os ouvidos do eixo anglo-americano e exporia muito mais os europeus às exigências comerciais de Washington. É por isso que, antes de “engravidarmos” pelos ouvidos, com a exageradíssima tese de que um envenenamento de um indivíduo é o “primeiro ataque com armas químicas em solo europeu depois da II Guerra Mundial” (uuhhh!…), convinha estarmos seguros dos passos a dar. Lucidez e prudência, como muito bem recomendou e reconheceu Marcelo Rebelo de Sousa.
Depois, é preciso consultar a História. Quando, a 28 de junho de 1914, o jovem, de 19 anos Gravilo Princip assassinou, em Sarajevo, o arquiduque austro-húngaro Francisco Fernando, uma cascata de alianças acabou por mergulhar as potências europeias numa escalada sem ponto de retorno possível. No final, a morte de um indivíduo acabaria por causar os 30 milhões de mortos da I Guerra Mundial, mais os 85 milhões da sequela de 1939/45. O paralelo com o que poderia acontecer, depois da morte deste indivíduo, e da atual cascata de alianças europeias e ocidentais, é irresistível. Afinal, o que é que nós temos a ver com um ajuste de contas entre espiões russos?…
Depois, há o problema das alianças. Um dos argumentos a favor da expulsão de diplomatas russos é o de que devemos solidarizarmo-nos com os nossos aliados. Independentemente de sabermos que, na atitude inversa, o Governo havia de ser acusado de seguidismo e subserviência, apetece perguntar: quais aliados? Na verdade, na União Europeia, Portugal não tem aliados, mas sim parceiros. É que, convém lembrar, não existe uma verdadeira política de Defesa comum na UE! Em bom rigor, os aliados de Portugal, no plano estritamente de Defesa, são os membros da NATO. Ora, entre os membros da Nato, há, pelo menos, cinco outros países que também não expulsaram diplomatas: Luxemburgo, Eslováquia, Albânia, Turquia e Grécia. Estamos, nalguns destes casos, mal acompanhados? É certo. mas, no que diz respeito aos três países que também fazem parte da UE, temos o ponto comum da dimensão. Não interessa pormo-nos em bicos de pés.
Sobeja o argumento da solidariedade com o nosso mais velho aliado, a Inglaterra. É verdade. Mas isso não nos obriga a alinhar com os ingleses noutras matérias – vide as negociações do Brexit. Mais, esse argumento podia ter sido usado quando Salazar fez tudo para manter Portugal fora da II Guerra Mundial. Ora, vista retrospetivamente, essa parece não ter sido a decisão mais contestada do ditador português…
Finalmente, a alegada necessidade de o Governo agradar ou submeter-se às opiniões de Bloco e PCP. Ora, se o Governo, por exemplo, em matéria económica e de leis laborais, áreas muito mais importantes, do ponto de vista da política interna, até tem resistido a ir para além dos acordos firmados quando da composição da “geringonça”, porque diabo havia de ceder neste ponto, completamente omisso dos tais acordos e insuscetível de indignar as massas? O que acontece é que há quem, às segundas, quartas e sextas, acuse os partidos à esquerda de estarem sempre a engolir sapos vivos, e às terças, quintas e sábados, acuse o Governo de estar na mão da extrema-esquerda.
Descansemos, ao menos, ao domingo.