Regresso de uma viagem ao «fim do mundo», designação usada pelos residentes da cidade de Ushuaia, a mais austral do planeta, situada na Terra do Fogo argentina.
Parti com a esperança de sentir na pele essa ideia, altamente sedutora para mim, de «fim do mundo» – que me lembra o livro do Nuno Bragança, ou a frase inicial da Casa na Duna do Carlos de Oliveira: «Na gândara há aldeolas, esquecidas entre pinhais, no fim do mundo». E, de facto, o agreste do local confirma essa sedução de abandono, solidão, beleza, melancolia.
Muito bem; mas de que quero eu falar? No decurso de um percurso turístico ao Parque Nacional da Terra do Fogo, o guia apressou-se a orgulhar-nos – éramos três casais amigos portugueses –, explicando que tinha sido o nosso Fernão de Magalhães a descobrir aquelas terras, pois nelas se passa do Atlântico para o Pacífico. E eu pensei logo no orgulho luso com os «Descobrimentos», em páginas infindas de livros que as nossas crianças têm de aguentar nas escolas, perguntando-me se o país em peso não considera ser precisamente esse o maior feito da História de Portugal. Passando, por osmose, o Camões a ser o maior vulto das nossas letras – o que sabemos não ser verdade.
A dada altura, o guia entregou-nos um folheto de apresentação do parque, onde consta uma parte muito destacada que fala dos «habitantes originais», os «yamana». Resumindo: quando chegaram os «exploradores» colonizadores, em 1880, os yamanas eram cerca de 3.000. Passados 30 anos, eram 100. Foram caçados e envenenados sem piedade. Devo dizer que os yamanas tinham a particularidade de quase não usar roupa, apesar de o clima ser gélido. E assim sobreviveram, durante milhares de anos, à severidade da Natureza. Quando os grandes «exploradores» chegaram, não duraram 30 anos.
O meu Eu1, que é naturalmente subversivo, fez a seguinte pergunta: como é possível alguém achar que descobre uma terra que já lá tem gente? O meu Eu2, mais complacente – nem que seja à custa da idiotice –, responde: esse povo nasceu lá, portanto não se pode dizer que tenha descoberto o espaço onde vive. É evidente que o meu Eu1 aproveita a deixa para aniquilar o adversário, retorquindo: e acha o meu amigo que o homem evoluiu dos antepassados símios na Terra do Fogo? Ou seja, mesmo admitindo-se a hipótese de o ser humano não ter nascido em África (o que seria altamente improvável, pois a origem africana do homem é a hipótese científica mais aceite; e não foi falsificada), alguém acredita que esse processo evolutivo (símio-homem) tivesse acontecido ali, num sítio onde só há leões-marinhos e pinguins? Em suma, quem descobriu a Terra do Fogo foram uns humanos «primitivos», há muitos milhares de anos, descendentes dos primeiros humanos que saíram de África e se espalharam por todo o restante planeta.
Tendo deixado o Eu2 de rastos, o meu Eu1 sentiu-se vitorioso e perguntou: como é possível a cegueira do autoelogio identitário falar de «Descobrimentos» com tanto orgulho, quando não descobrimos nada? É que, no caso português, toda esta questão é ainda mais pertinente, pois os nossos descobridores de África são também descendentes de humanos que saíram de África há muitos milhares de anos. Enquanto espécie, esse humanos não foram «descobrir» coisa alguma, mas apenas conhecer o local onde nasceram.
A resposta a esta pergunta é fácil: a cultura (de qualquer povo) precisa de criar heróis, normalmente míticos – como é o caso –, para reforçar a identidade e o orgulho dos seus membros; caso contrário, não sobrevive. Mas por que não se fala, então, de outro tipo de heroísmo que, não viciando a História, enalteça os nossos corajosos e intrépidos viajantes, que permitiram conhecer esses mundos e disso dar notícia de forma ampla, ou seja, criando a primeira verdadeira globalização?
Para terminar, diria que a ideia de «descoberta» deve, neste caso, ser banida, pois, para além de falsa, permitiu uma convicção de posse – e, consequentemente, de direito sobre os povos que viviam nesses locais – que justificou todas as atrocidades que conhecemos. E, já agora, também explica todos os filmes americanos (de série B) sobre extraterrestres, que os apresentam como seres malvados, ansiosos por exterminar os terráqueos. Percebe-se bem onde tais realizadores de segunda foram buscar a inspiração.