Nos Açores, nos Poços das Capelas, a cem metros do oceano, a manhã do 25 de Abril nasceu molhada, cinzenta, taciturna, triste, sem cravos de permeio, porque cravos não brotam na beira-mar da ilha. Depois, as quatro paredes do confinamento imposto não permitem ir ao Mercado da Graça adquirir a bela flor rubra de Abril, que nesta altura devia ser considerada bem essencial.
Subi o estore, olhei o caminho que ladeia a piscina natural de rocha basáltica, e, ao lado, a rampa de varagem da velha baleação capelense, e tudo deserto. Não havia vivalma. Cantaria naquela altura Maria Guinot, imagino, “silêncio e tanta gente”!
Cantarolei “E depois do adeus”, em voz baixa para manter dormente o sentido do momento em pijama e ao cheiro do café, altura amena e simples, diferente das anteriores comemorações, porque confinado às quatro paredes da minha fortificação. O “melrinho” – assim chamamos ao pássaro da ilha – que é visitante insistente de todas as manhãs, juntou a sua à minha voz e ambos cantarolámos alegremente o amanhecer da liberdade. Como sempre, agradeci-lhe a companhia com os miolos de bolo lêvedo e, no horizonte, o Sol percebeu que era preciso despontar e despontou.
Cada um sente de maneira diferente a liberdade. E, quanto mais longe do Parlamento, melhor, para perceber o poder sectarista parlamentar de Lisboa, onde, em comemorações românticas, arrisco, alienadas, políticos se juntam autoelegendo-se gente aparte. Para os eleitos, só depois deles está o povo real, o que não comemora porque não pode, o dos milhões de homens, mulheres e crianças do país interior, litoral e ilhas, confinado às suas casas. O povo que viveu profundamente na pele o antes do 25 de Abril, que arrostou com trabalho de sol a sol e a pé descalço, que comeu o pão que o diabo amassou, que mandou filhos para a guerra e os foi receber ao cais entre quatro pranchas de madeira, o povo que não aceita lições de democracia, porque, muito dele, sofreu intensamente a ditadura.
Não se compreende que um ex-Presidente da Assembleia da República, o açoriano Mota Amaral, ausente da comemoração, segundo alegou por força do estado de emergência, deseje a Ferro Rodrigues “força para aguentar a crítica dos que não gostam do espírito de Abril”. Como se atreve? Quem não gosta de Abril? Os que discordam do autoritarismo desajeitado de Ferro Rodrigues, que, com as anuências do Presidente da República e do Primeiro Ministro, impôs uma comemoração dando um mau exemplo aos que vivem há semanas prisioneiros de quatro paredes? Salvo exceções, que são pontuais, no país não há povo que não goste de Abril. Deveríamos encarneirar e pensar o mesmo que Mota Amaral, sob pena de nos chamarem nomes feios? Sob pena de nos atribuírem rótulos cheirando a bafio do período pré-revolucionário, a demagogia barata, a desinformação? A tentativas de justificar posições, não pelo valor que têm, mas pela distorção da realidade? Essa não é uma boa prática da liberdade.
Recordo o ano de 1993 e o boicote em bloco dos órgãos de comunicação social aos trabalhos parlamentares, em repúdio para com a imposição do Parlamento da não circulação de jornalistas no edifício da casa da democracia. Dada a falta de cobertura jornalística, os trabalhos não foram realizados e a sessão parlamentar foi cancelada.
Na comemoração deste 25 de Abril, não foram os jornalistas a serem privados de circular no Parlamento, foi o povo português que esteve privado de circular na Pátria. Um pouco de solidariedade não ficaria mal aos responsáveis políticos.
Os órgãos de comunicação social, tal como defenderam a liberdade da classe em 1993, deviam ter repudiado o sectarismo e a prepotência destes senhores em imporem uma comemoração não comemorada pelo povo todo. Eles, jornalistas, não puderam circular nos corredores da Assembleia da República, em 1993; o povo português, no dia da Democracia do ano de 2020, não pôde circular e comemorar nas ruas de Portugal. Que bom teria sido um boicote total à cobertura desta comemoração, perfeitamente dispensável nos moldes em que se verificou.