De visita à minha segunda pátria, a Bélgica, entro numa exposição retrospectiva de outro meio-belga: Maurice Béjart. Nasceu francês e acabou suíço, eu sei. Mas foi na Bélgica que ele foi tudo o que foi na vida. Ele, o seu “Ballet du XXème siècle” e, claro, Jorge Donn. Que também era meio-belga, só por acaso nasceu argentino – quem não perceba de que é que estou a falar, deverá ver (ou voltar a ver) o filme “Les uns et les autres”, de Claude Lelouch.
Emocionei-me um pouco na exposição, não pelo que lá estava – que era quase nada – mas, precisamente, pelo que lá não estava. Não que goste especialmente de dança. Mas não resisto perante a “Grande Obra”, qualquer que seja a forma da sua manifestação.
Na exposição, comprei um marcador de livros com uma frase do Nureyev (eles devem ter feito as pazes algures, senão a fundação não tinha lá frases do homem) que dizia mais ou menos isto: “quando perdemos a inspiração, resta-nos a técnica”. E eu fiquei a pensar na coisa.
A arte está impregnada de falta de arte. E, normalmente, os falsos artistas são os que se refugiam na técnica. A música é um excelente exemplo, muito provavelmente, o melhor. Porque não há pintores ou escritores que não sejam os próprios artistas; não pintam nem escrevem obras de outros. No entanto, a música está cheia de “artistas” que são apenas executantes. Ou os que cantam, ou os tocam. As salas de concerto internacionais enchem-se de intérpretes de música de outros. São artistas? Não sei, duvido. Porque o artista é o que cria, não o que repete. A música “ligeira” está cheia de ídolos – os mais jovens idolatram-nos – que nunca compuseram um acorde. Na prática, não são músicos. São actores. Ora, como estes também são considerados artistas, tudo se torna confuso. Mas diria que um Liszt é pianista antes de ser músico; e um M. Pollini, ou uma M. Argerich (mais uma argentina), são certamente pianistas ponto final.
Quero com isto dizer que a técnica tem uma limitação cruel sem a inspiração. Estou de acordo com o célebre bailarino. Mas pergunto-lhe: nos grandes “ballets”, qual a margem da inspiração dos bailarinos? Será que ela ultrapassa a verdadeira inspiração visível, que é a do coreógrafo – como o Béjart -, e que tudo controla?
Mas, antes de responder, lembro a ciência: será que esta primazia da inspiração sobre a técnica é apenas entendível no mundo da arte? Penso que não. Não vejo mais aprendizagem, mais treino, mais suor, mais técnica na ciência do que na arte. Einstein foi, aos 26 (ou 36, consoante o ponto de partida que considerarmos), o homem que mais sabia de Física e Matemática no mundo? É óbvio que não. Apenas terá sido bafejado pela suprema inspiração, aqui sinónimo de arte (partindo do princípio que não “se inspirou” nas teorias da primeira mulher).
No entanto, valorizo a técnica acima do que é habitual. A nossa ciência e a nossa arte, mas sobretudo a primeira, estão cansadas de criaturas que desprezam a técnica. E que não percebem que sem conhecimento não há criatividade possível. A minha passagem pelo mundo do ensino universitário – apesar de tudo, foram 20 anos – ficou amargamente marcada pela presença constante de “artistas” que achavam que podiam “pensar o mundo” sem conhecer, em profundidade, os métodos e as técnicas que usamos para o conhecer. O máximo de limitação científica que conheço é a dos sujeitos que dizem, cândidos de inocência irresponsável: “isso é um problema que os técnicos resolverão”. E os técnicos aplicarão as técnicas de observação ou de análise (normalmente estatística) que considerarão melhor opção, sem que os “encomendantes” tenham a mínima noção das consequências das opções tomadas.
Queria terminar, respondendo à pergunta que fiz ao Nureyev. Duvidei da sua frase, mas ele tinha razão: nos grandes “ballets”, existe – é indiscutível – uma inspiração do bailarino para além da do coreógrafo. Um exemplo dessa arte vejo-a, podemos vê-la todos, na expressão facial (para não falar da corporal) do Jorge Donn. Que, às vezes, até pintava a cara como os guerreiros africanos. Insisto: vejam o “Les uns et les autres” (outra vez).
Como já aqui disse um dia a propósito da criatividade e do conhecimento, não pode existir inspiração sem técnica. Mas esta de pouco serve se não houver inspiração.