Confesso que não consegui deixar de rir. Primeiro foi apenas um sorriso, que se insinuou no canto da boca, repuxando-me os lábios. Depois escancarou-se e tornou-se imparável. Quando outros companheiros de redacção se juntaram em volta de
Um Estado Melhor, apresentado ontem, quinta-feira, pelo vice-primeiro-ministro, Paulo Portas, houve um contágio. Às tantas, éramos uns quantos a rir.
Este documento é o famoso guião para a Reforma do Estado de que Pedro Passos Coelho incumbiu Paulo Portas. Na altura, Portas ainda ocupava o cargo de ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, antes da irrevogável birra que o alcandorou ao atual estatuto no governo. Passos Coelho atirou-lhe para o colo essa tarefa de definir as funções e a dimensão futura do Estado.
Claro que a questão de fundo era a de saber por que razão PSD e CDS-PP não tinham um reforma de Estado preparada quando assumiram o governo. Afinal, esse é o problema há muito detetado e que nos levou ao resgate. Sem alternativa estudada, Passos seguiu o guião da troika. Daí que os alemães, o BCE, o FMI e a CE nunca se tenham confrontado com um discurso alternativo ao guião negociado com os socialistas moribundos de José Sócrates.
Sempre pensei que a entrega da tarefa de produzir o guião era um presente envenenado de um político hábil a um político esperto. A passagem de Paulo Portas pelo governo não havia de ficar conhecida pelos investimentos conseguidos pelos vistos gold ou pela propagandeadas visitas ao Médio Oriente, de onde pingavam um negócios para as empresas portuguesas. Portas pôs-se a jeito e Passos passou-lhe um cheque. Portas fez mate.
A primeira vez que soubemos que o Governo tinha esse ambicioso objetivo de reformar o Estado foi em outubro de 2012, ia o programa de resgate a meio. Em fevereiro do ano seguinte, Passos anunciou que seria Portas a coordenar esse trabalho. Em maio, Paulo Portas prometeu entregar o documento em Junho de 2013. Falhado esse prazo, já depois do episódio da irrevogável demissão, Portas prometeu para o final de setembro o documento. Mas só em outubro tivemos a oportunidade de o conhecer.
A primeira versão foi recebida como uma comédia. O documento havia sido produzido em letra de corpo 16 e os parágrafos estavam espacejados de forma a parecer conter mais do que na verdade continha. Mas também como uma farsa, pois faltava-lhe o essencial: uma ideia do que se pretende com e do Estado. Eu que não tenho problema nenhum de termos menos Estado mas um Estado melhor (e como podia ser melhor…) tive de me contentar com um conjunto de ideias avulsas: concessão de escolas a professores, cortes nos ministérios (de quanto?), venda de património imobiliário, fusão de institutos, agências e observatórios (não quantificados), menos empresas públicas (quais?), menos militares (quantos?), fusão de câmaras (onde?), criação de cursos no ensino superior de ciclo mais curto… Foi isto que em outubro, quase dois anos e meio depois de tomar posse, o Governo tinha para dizer sobre o Estado que pretendia: governava há dois anos e meio mas ainda não estava preparado para reformar.
Finalmente, chegou o dia de ontem e Paulo Portas anunciou, urbi et orbi, a partir do Real Palácio da Ajuda (a sua obsessão com o aparato…), a versão final do Guião da Reforma do Estado. Desta feita, disse, com um calendário de execução. É o tal documento intitulado Um Estado Melhor que no início desta crónica, disse-vos, fora motivo de riso.
O documento agora tem 98 páginas e já não vem em letra de corpo 16. Os parágrafos também já não estão tão arejados. Tem um capítulo dedicado a Um Estado Moderno do Século XXI, no qual se afirma: “O objetivo é tornar as Administrações Públicas menos pesadas, visando, ao mesmo tempo, reforçar o poder dos cidadãos, das famílias, das empresas e das instituições”. Já se vislumbra uma reflexão sobre o que se pretendo do Estado. Mas também tem frases como esta: “”Cortar” é reduzir; reformar é melhorar”; “”Cortar” é cumprir metas; reformar, é mudar de modelo”. Parece uma campanha eleitoral – e talvez seja.
Na parte final do documento, aparece o calendário das medidas. São 118 e alinha reformas concluídas (?), em curso e por implementar. Propõe-se o plafonamento das pensões, as escolas livres, a revisão do IRS, as rescisões na Função Pública. Algumas estendem-se até 2020 (pensarão Portas e Passos que o seu Governo não acaba em 2015?) E outras são de uma vacuidade absoluta: “Internacionalizar o setor da saúde”; “Aumentar a participação dos jovens no ensino superior”; “Massificação do uso dos serviços públicos”. A conclusão deste processo só nos podia despertar gargalhadas – poucos foram tão atribulados e amadores. Mas que isso não nos impeça de agora olhar para o documento e finalmente começar a discutir a sério o que Estado que queremos. E aquele que não podemos ter. Porque isso é que é preciso.