Com quanto esquecimento se ergue uma estátua?”
Isto foi o que pensou Hipólito Azaguri enquanto o seu melhor amigo, Isaías Pinto, se exaltava com o derrube das estátuas:
– Estão a destruir a memória da nação — queixou-se Isaías.
Hipólito pensou em retorquir: cada uma daquelas estátuas pretendia perpetuar a memória e a grandeza do projeto escravocrata. Ao mesmo tempo, assinalavam um vazio, pois erguiam-se por entre o triste silêncio dos humilhados e esquecidos. Não disse nada. Ficaram os dois calados, assistindo ao espetáculo da turba que, depois de atirar baldes de tinta vermelha contra o rosto da estátua, se afadigava agora a amarrar grossas cordas nas pernitas marmóreas da mesma.
– Vê como sofre! – disse Isaías. – Não resistirá ao primeiro puxão.
Há 20 anos que se encontravam naquele parque, todos os domingos, ao meio-dia, depois da missa – contando que fizesse sol. Sentavam-se a uma mesa, à sombra húmida de uma pujante figueira-da-índia. Hipólito ia montando o tabuleiro de xadrez enquanto cantarolava: “Cuando tengas que partir / Quiero que sepas / Que estaré pensando en tí / Todos mis días.”
Perdiam e ganhavam tendo a estátua como testemunha. Até lhe tinham posto uma alcunha: o Petulante. Incluíam-na nas suas conversas:
– Ali o Petulante jogava pior do que tu – costumava dizer Isaías, apontando com o queixo para a estátua. – Dizem que um dia jogou a própria esposa e a perdeu.
O Petulante era como se fosse um companheiro mudo, porém atento, que partilhava os risos e as memórias dos dois homens. Isaías e Hipólito haviam combatido em Angola. Um ganhara, outro perdera. O que ganhara, perdera um pé. O que perdera, ganhara uma entranhada paixão pela culinária angolana. Conheceram-se alguns anos depois da independência de Angola, porque Hipólito precisava de uma nova prótese e alguém lhe indicara o nome de Isaías. O antigo soldado português fabricava próteses estéticas hiper-realistas em silicone. Ficaram amigos. Mais tarde, Hipólito reformara-se, trocara Luanda por Lisboa, e desde então os dois homens passaram a encontrar-se todos os domingos. Depois do jogo, Hipólito convidava Isaías para almoçar em sua casa. A esposa, dona Fina, cozinhava às vezes um funje de peito alto, às vezes um feijão de óleo de palma. Isaías comia e chorava por mais.
– Não há melhor cozinha do que a sua, dona Fina. Não se quer casar comigo?
Agora ali estavam os dois, o angolano e o português, num fresco domingo de primavera. Enquanto viam ruir o Petulante, voltavam a posicionar-se em lados diferentes da barricada. Isaías sentia a queda da estátua como se fosse a dele, que se batera pelo Império, com todas as suas glórias e todos os seus inumeráveis crimes, incluindo o da escravatura. Hipólito experimentava uma espécie de pequeno renascimento, como se lhe estivessem a recolocar na perna o pé legítimo, perdido na guerra de libertação. Avançou a rainha no tabuleiro:
– Acho que perdeste – disse para o português. – Cai o Petulante e cai o teu rei.
Isaías deu um soco na mesa, derrubando as peças todas:
– Não se pode apagar a História!
Dessa vez, Hipólito enfrentou-o:
– A História tanto se escreve erguendo uma estátua como deitando-a abaixo. Está sempre lá. O que muda é a forma como olhas para ela.
– Não me venhas tu ensinar História. Vocês nem História tinham quando os portugueses chegaram a África. O que sabes tu de História?
– Perdi um pé para ajudar a escrever uma outra História.
– E eu dei-te um pé!
– Deste não, paguei-o! Mas queres o meu pé?! Então fica lá com o pé!…
Dizendo isto, Hipólito desatarraxou o pé e atirou-o contra a cabeça do amigo. O outro esquivou-se a tempo. A prótese girou no ar, afundando-se, alguns metros adiante, num canteiro de hortênsias. Foi então que entrou em cena uma nova personagem — Kabiri, um fox terrier que tinha também o hábito de passear no parque. O cachorro agarrou no falso pé e correu com ele nos dentes até junto dos jovens iconoclastas, os quais, concentrados a desmembrar o Petulante à machadada, não deram logo por ele. Finalmente, uma rapariga viu-o e gritou:
– Um pé! O cão tem um pé na boca!
Foi a confusão geral. No meio da gritaria, Isaías conseguiu encurralar Kabiri, arrancando-lhe a prótese dos dentes. Regressou para junto do angolano. Sentou-se, sem conseguir conter o riso. Riram-se os dois. Hipólito voltou a colocar a prótese:
– Tens fome? – perguntou ao outro.
O português assentiu com a cabeça. Uma hora mais tarde, suando muito, enquanto se batia bravamente com um magnífico calulu de carne seca, voltou a lembrar-se do Petulante.
– À machadada, Hipólito?! Ninguém merece…
Dona Fina assustou-se:
– Mataram alguém?
– Não! – sossegou-a o marido. – Mataram uma ideia. À machadada.
Isaías ia retorquir – “ideias não se matam assim” –, mas desistiu. O calulu estava excelente. Fazia calor. Bebeu um gole de cerveja e sorriu. As estátuas que caíssem todas. O mundo que tremesse e se exaltasse. Não havia causa ou revolução que valesse o caloroso tempero de dona Fina.