As aulas práticas de Anatomia, no Teatro Anatómico, que duravam das duas às seis, não me interessavam peva de modo que ia com um colega para um cinema de sessões contínuas, com dois filmes, numa sala por trás da Praça do Chile. Filmes de caubóis, filmes policiais, filmes românticos. Foi onde me apaixonei por Lana Turner e Sarita Montiel, a Imitação da Vida e as Violetas Imperiais, e o facto de ter hesitado tanto tempo entre as duas foi que perdi ambas. Que mulher pode gostar de um garoto indeciso de dezassete anos, a vacilar entre o peito de uma e o rabo da outra? Fiquei reduzido a contemplar às escondidas as nádegas da cozinheira enquanto os meus companheiros esfaqueavam cadáveres, de olhos chorosos de formol. A senhora da bilheteira era cliente da loja de artigos eléctricos do pai do meu colega, de modo que chegávamos ao guiché, ele piscava o olho à senhora, pedia
– Dê-me dois lugares dos bons
a senhora da bilheteira estudava o assunto, folheando papelinhos e arranjava-nos cadeiras em sítios distantes um do outro, ao lado de senhoras solitárias com mais do dobro da nossa idade. As senhoras solitárias, de um modo geral, eram compassivas e generosas. As luzes apagavam-se, a Imitação da Vida ou as Violetas Imperiais começavam e, com os filmes, um joelho encostava-se ao nosso e desaparecia a seguir, voltava passados minutos e ficava mais tempo, voltava de novo e não se afastava mais. Ao fim de um quarto de hora tínhamos uma mão na coxa, primeiro ao de leve, depois afagando-nos num carinho que ia aumentando e ao qual éramos sensíveis, colocávamos, quase à beira do desmaio, a mão sobre a mão delas, de polegar geralmente bastante activo, afastávamo-nos quando as luzes se acendiam e, cá fora, de cigarro no bico observávamos as nossas acompanhantes, geralmente criaturas de cerca de cinquenta anos, algumas com duas alianças, outras só com uma, outras sem aliança nenhuma, em regra de cabelo pintado de loiro, o que nos aumentava o fervor, pesando-nos à socapa diante de uma chávena de café. Comentava para o meu colega
– São velhas
o meu colega, mais culto do que eu, esclarecia-me
– Não há melhor que uma velha: pensam sempre que é a última vez
o argumento, poderoso, convencia-me, tanto mais que eu vez nenhuma, rondávamos por ali um bocado até a campainha tocar, enquanto o meu colega me ensinava, grátis, alguns princípios técnicos elementares que se me baralhavam um bocado na cabeça, ocupávamos os nossos sítios e lá recomeçava o jogo das pernas e das mãos, onde eu introduzia algumas das estratégias aprendidas durante o intervalo
– Não é assim é assim, percebes?
ou
– Experimenta devagarinho o cotovelo contra a blusa
em geral com relativo êxito porque, volta e meia, o meu braço agarrado com a outra mão e um apertãozinho cúmplice e discreto na coxa que me punha à beira, à beirinha, que me punha por uma unha negra, à mercê de espasmos comprometedores. Pelo canto do olho parecia-me que o público mais próximo não se apercebia de nada, excepto talvez um homem a seguir a ela que, às vezes, me dava ideia de nos observar com aprovação, um senhor careca, de bigode coçando o anel do mindinho numa satisfação lenta. A certa altura a senhora levantou-se, mais gorda e mais baixa do que eu pensava, convidando-me a acompanhá-la puxando-me leve o pulso e largando-o e, como estávamos a meio da fila, lá fomos progredindo, de banda, tropeçando em joelhos sucessivos
(alguns protestaram)
a caminho da coxia, passámos um bombeiro de capacete perto da cortina da saída, caminhamos um atrás do outro, numa distância discreta, a caminho da rua, onde os candeeiros já acesos e o princípio da noite, ela à frente, eu a seguir, mais aflito do que entusiasmado, a pensar
– E agora?
a pensar
– Como é que eu faço?
dobrámos uma esquina, uma segunda esquina, um mercado fechado, uma loja de brinquedos onde um macaco de peluche tocava tambor, cada vez mais lento dado que a corda a extinguir-se, o macaco um riso parecido com o da minha tia Lélita a quem o marido não ligava nenhuma
(se calhar já tinha visto o macaco de peluche com o tambor antes de mim)
a criatura parou diante de um prédio de três andares, sem elevador, que conhecera melhores dias, tirou as chaves da carteira, abriu a porta, deixou-a encostada e principiou a subir as escadas devagarinho, arrastando um pouco a anca direita e eu mais recuado, embaraçadíssimo, com ganas de me ir embora a correr e, no entanto, ali, a criatura girou uma das portas do primeiro andar, esfregou as solas no capacho, o que me pareceu um bom princípio de higiene, atravessou o vestíbulo com um galgo de loiça quase do meu tamanho e um espelho de moldura de talha onde entrevi a minha cara em pânico, sentou-se num sofazinho, bateu na segunda almofada do sofazinho, ao seu lado, indicando-me, ofereceu-me um cálice de não sei quê, que por acaso não me ardeu na garganta, tirado de um frasco facetado de uma mesita de tampo de vidro, chocou o cálice dela no meu
– Ora cá estamos nós
pareceu-me ouvir os passos de alguém atrás de mim, ergui-me sobressaltado e ela, a passear-me a língua na orelha
– É o meu marido
enquanto o senhor careca, de bigode, sempre a coçar o anel do mindinho numa satisfação lenta, avançava para mim por seu turno, simpático, contente, a elogiar a mulher
– Não escolheste mal, Adelaide
a compor-me a gravata que as emoções entortaram, a gabar-me
– Um rapazinho jeitoso
a aproximar a cara da minha
– Gosto de rapazinhos jeitosos, podes sair Adelaide
a inclinar-se para mim, de boca estendida, enquanto a criatura se afastava arrulhando
– Guarda-me um bocadinho no fim
e tive de empurrá-lo com força, ele
– O que é isso?
a tentar segurar-me, enquanto eu deitava, sem querer o galgo ao chão, abria a porta, o cavalheiro, lá de cima
– Vais-te embora assim?
comigo a trambolhar pelas escadas até à rua, a chamar um táxi que os meus pais pagariam
(da Praça do Chile a Benfica havia tempo para inventar uma desculpa)
a tremer de pânico, a pedir à cozinheira que acalmasse o táxi, garantido que já lhe estendia o dinheiro, a aterrar junto aos meus pais que liam o jornal a meias, tão aflito, tão pálido, tão sem forças que o meu pai entregou a massa ao chofer sem que eu necessitasse de desculpa nenhuma. Pensando melhor entre Lana Turner e Sarita Montiel prefiro a minha mãe.