1. A existência de uma maioria absoluta inevitavelmente desvaloriza o Parlamento na sua vertente fundamental de fiscalização do Governo. Pode-se elaborar a tal respeito, mas é assim mesmo: o Parlamento perde perante a opinião pública boa parte da sua importância. Por de antemão se saber que não vai fazer cair o Governo; e, mais ou pior, porque a maioria parlamentar em vez de exercer uma função autónoma e criativamente fecunda, sempre que necessário crítica, ou mesmo incómoda, em regra apenas segue, apoia ou amplifica o que o Governo quer.
Será isto surpreendente? Não: o grupo parlamentar e o Governo são do “partido”, e o comando de ambos é o mesmo e do mesmo. No caso, um comando forte, embora sorridente (e quero crer que dialogante), de um político muito talentoso e preparado, com múltiplas boas provas dadas. Acresce que há muito se verifica, com as inerentes consequências, uma crescente tendência para as eleições para a “casa da democracia” parecerem mais para primeiro-ministro do que para os 230 deputados que representam, na sua diversidade, a soberania popular.
Trata-se de uma indesmentível realidade de facto, que ganhou foros de realidade de jure após o Presidente da República, no discurso de posse do executivo, ter feito depender a sua subsistência até ao fim da legislatura de António Costa se manter como primeiro-ministro.
2. Mas esta é outra história. O meu ponto, agora, é a imprescindibilidade da Assembleia da República, para não se desprestigiar, para servir a democracia e o País, ser capaz de ter uma agenda à altura, trabalhando a sério no muitíssimo que, dentro das suas competências, pode e deve fazer. Sob outra perspetiva: tendo, claro, de constituir a base de sustentação do Governo, a maioria do PS não deve ser um seu simples “prolongamento” ou uma sua mera “câmara de eco”, antes preservar a autonomia crítica – e sobretudo ter iniciativa própria em muitos campos em que ela é necessária.
A esta luz, registo com satisfação que o novo líder parlamentar socialista, Eurico Brilhante Dias, em entrevista ao Público, anunciou a intenção de debater, para alterar, a lei eleitoral para as legislativas. Trata-se, em meu juízo, de uma imperiosa necessidade: há décadas a defendo, instituindo-se um sistema misto, com um círculo nacional (à alemã), muito mais justo, por razões bem conhecidas. Tudo que a isso se refere está, aliás, mais do que estudado – e quando o PS e o PSD ensaiaram um acordo a esse respeito* (as alterações exigem maioria qualificada), sendo seus líderes Guterres e Marcelo, o MAI, de que então era titular António Costa, editou até um livro com a legislação de outros países. Então, e como usual, nada se adiantou por vulgares razões “políticas” conjunturais, sendo o pretexto, por parte do PSD, o PS não aceitar, à partida, a muito substancial redução de número de deputados que propunha. Voltarei ao tema.
3. O prestígio do Parlamento com uma maioria absoluta, passando muito pelo que o PS faça, passa também pelo que façam todos os partidos e deputados. Desde logo não transformando o hemiciclo num palco de comício, ou espécie de barraca de feira, para tentar conquistar votos futuros ou vender o seu “produto” sem olhar a meios.
Neste aspeto, a legislatura que agora se inicia comporta ameaças que se impõe quanto possível evitar ou minimizar: não violando qualquer princípio da democracia ou norma legal, antes fazendo-os respeitar como se exige.
E, neste domínio, assinalo que era difícil, mas mais uma vez o Chega e o seu chefe, numa surpreendente proeza, conseguiram! O quê? Ultrapassar as piores expectativas. Era previsível que muito iria mudar para pior – mas não tanto! – com uma bancada de uma dúzia de deputados de um partido em que se misturam o extremismo de direita e um populismo tão primário como ordinário – ainda por cima de slogans constantemente repetidos e gritados.
Desde a mentira sobre a reforma da anterior ministra da Justiça, como se a reforma adviesse de ser ministra e não de 40 anos de magistratura, até às barbaridades sobre ciganos, houve de tudo. Espera-se ao menos que André Ventura aprenda depressa com a sua “madrinha de guerra”, Marine Le Pen, e se modere nas palavras, civilize no estilo, não berre tanto…
À MARGEM
As vice-presidências
Como aqui mostrei em fevereiro, analisando a lei e o regulamento pertinentes, nada obriga a Assembleia da República a ter quatro vice-presidentes – e muito menos os deputados serem “obrigados” a eleger quem os quatro maiores partidos proponham. Assim, e muito bem, os candidatos propostos pelo Chega foram chumbados. Assim, legal e legitimamente, mas muito mal, o líder da IL, Cotrim de Figueiredo, foi chumbado. Injustamente, tal chumbo constituiu apenas um “serviço” ao Chega, num erro que se possível deve ser reparado.