Na autobiografia imaginária Memórias de Adriano, a obra-prima de Yourcenar, o velho imperador explica ao sucessor Marco Aurélio que o gráfico de uma vida humana se compõe de “três linhas sinuosas, prolongadas no infinito, incessantemente aproximadas e divergindo sem cessar: o que o homem julgou ser, o que ele quis ser e o que ele foi”. É também assim, com três traços que se aproximam mais ou menos, o desenho do percurso de um político ou governante: o que o povo julga que ele é, como ele se apresenta e como será na realidade. Nos momentos das eleições, estas três linhas podem aproximar-se ou, pelo contrário, afastar-se significativamente.
O que se passou à direita, com Rui Rio, mostra bem isso. O que Rio é – autêntico mas errático, simpático mas autoritário – e o que quis ser – um estadista capaz de governar Portugal numa altura de especial complexidade – apartaram-se de forma notória. E o resultado foi uma derrota para o PSD, que não conseguiu mobilizar o voto útil à sua volta, apesar de seis anos de governação socialista e de um desgaste da solução governativa apresentada ao País.
Não são as oposições que ganham as eleições, mas os governos que as perdem, dir-se-á. Esperando sentado, o poder acabaria por cair no colo do PSD. Mas o concorrente direto, com os seus erros estratégicos, propostas pouco claras e falta de posicionamento ideológico firme, pode fazer a vida difícil aos governantes incumbentes ou dar-lhes uma mão. Mais do que uma mão, Rui Rio deu um braço inteiro a António Costa. Nem houve “banho de ética”, nem serviu como alternativa no centro-direita-que-não-se-assume-como-direita.
Na verdade, pouco importa agora chover sobre o molhado e insistir nos lapsos do rioísmo. O mal está feito, adiante. O problema é quando o adiante vem demasiado à frente, longe demais. Porque um PSD forte, com estratégia e ideologia claras e um líder capaz de as manter, é essencial para o equilíbrio do sistema democrático.
O seu papel é, em boa medida, muito maior do que o espaço que ocupa a cada momento, porque é responsável pelo vazio que deixa de um lado e de outro do seu espaço outrora natural. Um vazio que é uma espécie de buraco negro da política: gera campos gravitacionais de atração que outros aproveitarão. Assim se explica a força do Chega e da IL, que, juntos, conquistaram mais de 650 mil votos e 20 deputados, e assim se explica a maioria absoluta do PS, conseguida não só com voto útil à esquerda mas, em grande parte, também à custa do eleitorado flutuante ao centro.
Não é só em tempo de eleições que este buraco negro deixado por um PSD desorientado e ambíguo é perigoso. Basta ver o que se passou desde o dia das eleições. A nova extrema-direita populista, racista e antidemocrática do Chega e o neoliberalismo radical da Iniciativa Liberal assumiram-se como os protagonistas da oposição. E, a cada dia que passa com um líder demissionário no PSD, mais se reafirmam como tal. Se não é tão grave no caso da IL, é-o no caso do Chega. A discussão em torno da vice-presidência, a que o Chega quer ter direito por inerência e não por eleição, como dita o regimento da Assembleia da República, é só o princípio. A normalização de retrocessos civilizacionais e atentados ao Estado de direito, o que se seguirá. Não é só o PSD que precisa de um reposicionamento e de um novo líder carismático que demarque bem o seu espaço: é o saudável equilíbrio da democracia portuguesa.