A situação é de tal forma confusa, as variáveis e as incógnitas são ainda tantas, que é verdadeiramente temerário fazer cenários para o pós-legislativas. Mas duas coisas me parecem, apesar de tudo, relativamente certas.
A primeira é meramente conjuntural: a esquerda sairá penalizada das eleições. Não sei se suficientemente penalizada para que perca a sua maioria parlamentar, mas diria que é quase impossível que os portugueses não castiguem a irresponsabilidade do PS e dos seus parceiros de Geringonça num momento tão sensível da vida do País. Estes últimos porque chumbaram um orçamento que, visto a partir da esquerda, não era – objetivamente – pior do que os vários orçamentos que viabilizaram até aqui. E o PS porque a sua sobranceria o levou a atuar como se dispusesse de uma maioria absoluta que os portugueses não lhe quiseram entregar e porque, mais grave, o levou a queimar, de forma absolutamente gratuita, todas as pontes com o PSD mais colaborante que alguma vez poderá ter conhecido. É bom, a este propósito, que se reavive a memória e que se faça a arqueologia desta crise: foi Costa que, em agosto de 2020, disse alto e bom som que, “no dia em que a sua subsistência depender do PSD, este governo acabou”.
A segunda certeza é mais interessante e mais plena de significado. Mais do que derrubar muros à esquerda, a Geringonça inaugurou uma inflexão parlamentar do nosso regime que não se reverterá tão cedo. Quebrado o tabu, e num cenário de progressiva fragmentação política, deixou de haver coligações impossíveis. Com todas, mas mesmo todas, as consequências que daí advêm. E algumas podem ser bem nefastas.
Esta nova realidade, que implicará uma nova cultura de compromisso e a tal necessidade de acordos formais que Cavaco percebeu e Marcelo desvalorizou, não permite assim que se excluam, à partida, quaisquer cenários. Nem a reedição de uma geringonça, provavelmente sem PCP, muito artificial e cicatrizada, em que o projeto de poder se sobreporá sempre a uma real comunhão de propósitos (que só existiria num quadro em que Costa entrega a batuta do partido a Pedro Nuno Santos). Nem um cenário de uma maioria à direita (que parece mais possível com uma nova liderança no PSD), provavelmente com alianças formais entre os partidos do arco liberal e com um Chega obrigado a decidir entre a viabilização de uma coligação de que não faz parte e o regresso da esquerda ao poder (no fundo, a estratégia que Rio deveria ter seguido nos Açores). Nem – porquê ignorá-lo? – uma solução ao centro, que tanto poderia ser uma reedição de um bloco central (essa ideia estranhamente maldita) como o tal acordo de cavalheiros com que Marcelo alegadamente sonha.
Apesar dos perigos (que os há), confesso que, em tese, não vejo só desvantagens nesta deriva parlamentar do nosso regime. O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Uma democracia madura não pode (não deve) viver dependente da formação de maiorias absolutas para assegurar a sua governabilidade.
Falta – pequeno senão – perceber se somos uma democracia madura. Se estamos mais próximos da sensatez germânica ou da imaturidade latina.
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