Dezanove das vinte empresas cotadas no PSI20 têm a sua sede, para efeitos fiscais, em domicílios europeus que praticam dumping fiscal, paraísos fiscais no quadro da União Europeia, como a Holanda ou a Irlanda. Tudo dentro da lei – invocam os seus grandes acionistas. Tudo sem um pingo de decência – diz um elementar juízo ético fundado num princípio de justiça.
Os offshores são a materialização daquela máxima em tempos enunciada por uma vedeta televisiva: “Quem tem ética passa fome.” A vedeta deu então voz ao chico-espertismo e à trapaça como estratégias de triunfo social. Os offshores são essa trapaça blindada, com valores astronómicos, tornada regime reservado às elites, numa lógica de apartheid global em que há pátrias económicas para ricos diferentes das pátrias económicas para pobres. Valores astronómicos, sim: segundo a OCDE, todos os anos há cerca de 240 biliões de dólares de impostos devidos que se evaporam em labirintos insondáveis que têm nos offshores os seus suportes jurídicos. 240 biliões que são retirados aos salários, às pensões ou aos serviços públicos, que são o sustento dos mais pobres, por empresários, políticos, artistas ou futebolistas, sempre lestos a rasgar as vestes em público contra a corrupção e a exibir bons sentimentos de luta contra a pobreza.
Sempre que a opacidade deste universo de ilegalidade institucionalizada é perfurada, a reação social oscila entre a apatia e a relativização do que é revelado, sob a alegação de que o alarme é inflacionado face ao número diminuto de práticas verdadeiramente criminais trazidas à luz do dia. Tinha sido assim com os Panama Papers, volta a ser assim com os Pandora Papers. A grelha da estatística criminal serve para desvalorizar o que é realmente importante. E o que é realmente importante são duas coisas. A primeira é que criminosa não é só a lavagem do dinheiro que alguém faz passar por um offshore, criminosa é a borla de evasão que o offshore significa em si mesmo. A segunda – que fica, uma vez mais, patente nos Pandora Papers – é que quem é beneficiado com os offshores jamais será ator do combate contra eles. Todo aquele discurso (tão gasto que ele é) de que pensar em acabar com os offshores é uma quimera angélica, porque acabar com um é dar força aos outros que ficam, é um fato à medida de quem alimenta o seu poder económico – e, por arrastamento, político e social – da persistência dos offshores e que os usa como instrumentos de evasão fiscal ou mesmo de lavagem de dinheiro. Acabar com os offshores só é uma tarefa hercúlea porque os poderosos precisam deles para terem regimes de favor para a sua riqueza e porque os governos são cobardemente cúmplices desse apartheid fiscal, feito de um regime para ricos e outro para pobres.
Todos os que, por negligência ou por interesse, são atores da manutenção dos offshores são assim cúmplices da mais corrosiva das descredibilizações da democracia e da mais irrecuperável das suas perdas de apoio social. Porque se há coisa que mina por dentro a sustentação social da democracia é a duplicidade de tratamento das pessoas, é a desigualdade injusta de direitos e de obrigações. Uma fiscalidade de favor e de permissividade para ricos em coexistência com uma fiscalidade de sacrifício e de dever para pobres e classes médias – querem melhor forma de tirar o chão à democracia? Da próxima vez que me vierem com aquilo dos que não querem trabalhar e que vivem à sombra do dinheiro de todos nós, eu vou perguntar: “São titulares de contas na ilha de Jersey ou de empresas com sede fiscal na Holanda, não é?”
Sabe bem pagar tão pouco/ O segredo é total/ Tens na ilha uma morada/ Virtual.
Guarda rico o teu roubo/ Franca liberdade/ Virar isto do avesso/ Seria maldade.
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