As eleições autárquicas têm uma vida e uma vitalidade próprias que são fundamentais para a saúde do nosso sistema político. É tentador sublinhar a falta de sofisticação de alguns candidatos, os “tesouros deprimentes” que ciclicamente se afixam pelas rotundas do País ou os debates enfadonhos para quem não conhece as realidades locais, mas a verdade é que as eleições autárquicas acrescentam uma dimensão de proximidade entre eleitores e eleitos e dão uma tangibilidade ao voto que, de forma alguma, existe nas eleições nacionais. São, nesse sentido, um antídoto importante para a crise de representação em que o País vai lentamente mergulhando e que vai abrindo portas a todo o tipo de discursos e tentações antissistémicas de esquerda e de direita.
Por tudo isto é muito redutor olhar para umas eleições autárquicas apenas através do prisma da chamada “leitura nacional”. Paradoxalmente, contraditoriamente, é, todavia, a isso mesmo que vou dedicar-me. Mas faço-o por uma razão pertinente: estou absolutamente convencido de que as eleições deste ano têm o potencial de ser o desbloqueador do grande marasmo político em que estamos mergulhados. Já o escrevi aqui, nas páginas da VISÃO: o País está bloqueado entre um Governo cansado, com ministros fora de prazo, sem qualquer ímpeto reformista, a que se adere mais por resignação do que por genuíno entusiasmo, e uma oposição sem um discurso coerente, sem lideranças e incapaz de articular uma visão para o País, alternativa, construtiva e minimamente mobilizadora.
Ora, as autárquicas podem mudar este estado de coisas. Desde logo podem precipitar mudanças de lideranças à direita. Sendo que é no PSD que, obviamente tudo se joga. Bem pode Rio tentar baixar a fasquia à 25ª hora. Depois da derrocada de 2017 – que, relembre-se, conduziu à queda de Pedro Passos Coelho –, o PSD está obrigado a reverter a tendência e a recuperar a distância significativa que o separa, em termos autárquicos, do PS. Sem o fazer, sem a conquista – altamente improvável – da câmara da capital ou do Porto, Rio terá os dias contados. E o processo da sua sucessão pode emprestar um fôlego diferente a uma direita que tem andado demasiado perdida no labirinto das suas contradições. A entrevista, corajosa, de Paulo Rangel é um sinal eloquente de que, apesar de tudo, algo se prepara.
Mas as autárquicas podem também criar um pequeno terramoto à esquerda. Não tanto no Bloco que nunca conseguiu encontrar fora dos salões de Lisboa uma expressão minimamente comparável com o palco mediático que tão eficazmente ocupa. Mas o mesmo não se pode dizer do PCP. Apesar de tradicionalmente fazer da sua implantação autárquica uma das suas fortalezas, a verdade é que o partido perdeu um terço das suas câmaras em 2017. Uma nova derrota expressiva, e em particular uma derrota a favor do PS, pode ter consequências imprevisíveis e pode obrigar o PCP a repensar a sua estratégia de sustentação do Governo, o que é particularmente relevante em vésperas de orçamento do Estado.
Foi assim com Guterres, foi assim com Passos, voltará a ser assim desta vez? Veremos. Mas começa a ser tradição: os pântanos não se dão bem com as eleições autárquicas.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.