A corrida à presidência de república nesta época de pandemia, especialmente numa fase difícil como esta, faria supor uma discussão mais frequente e acesa sobre os temas da saúde. Não tem sido isso que tem ocorrido, à exceção do debate, a 7, na RTP. Fala-se sempre da pandemia na perspetiva do confinamento, que uns defendem mais do que outros, mas muito pouco sobre o sistema de saúde que temos e o que os candidatos pensam sobre ele.
Há, apesar de tudo, algumas referências pontuais em que as posições têm divergido e que nos ajudam a entender o pensamento de cada candidato:
1. Desde logo a diferença ente uma visão liberal da saúde versus uma visão mais social ou até estatizante. Mayan Gonçalves e André Ventura (quem diria!) reproduzem, nos debates e sobretudo nos seus programas, uma visão ultraliberal, em que os recursos da prestação de cuidados deveriam ser maioritariamente privatizados e os cidadãos poderiam escolher. Não se percebe bem quem pagaria, mas supõe-se que, num regime de Estado mínimo, este financiaria os pobres, para serviços mínimos, e os restantes cidadãos pagariam diretamente ou através de seguros de saúde. A ideia da liberdade de escolha em saúde é uma ilusão em vários domínios: saúde mais cara, pior distribuída e pior controlada, em matéria de adequação e qualidade. Os doentes sentem necessidades, mas não são capazes de identificar o que realmente precisam. E a livre intervenção de um setor privado com fins lucrativos, com ou sem a capa social, conduziria a um excesso de consumo para alguns e a ausência de cuidados para muitos. A despesa não pararia de crescer e as iniquidades também. Os resultados globais seriam catastróficos, como hoje observamos em sistemas liberais como o norte-americano ou o brasileiro.
2. Neste capítulo, João Ferreira, Marisa Matias e Ana Gomes têm coincidido em dois pontos: a defesa intransigente do SNS, com mais investimento público, e uma perspetiva não só preconceituosa como punitiva contra a iniciativa privada: na pandemia prestar serviços ao SNS a preço de custo, em situação normal descartar o setor privado. Esquecem-se que o setor privado tem servido de válvula de escape, tanto para as ineficiências quanto para as listas de espera do SNS e, valha a verdade, representa novos modelos de organização, em que a personalização, o conforto e a rapidez podem ser fatores de atração para muitos portugueses, funcionando até como ensinamento para uma melhor gestão do SNS. Não deixou, a propósito, de ser curioso ver o embaraço de Marisa Matias, quando Mayan Gonçalves a confrontou com a questão da ADSE. Afinal Marisa defende este subsistema, mas não sabe explicar porquê… Privilégios para funcionários públicos e lucros para o setor privado, tudo o que ela seguramente pareceria não desejar. Diga-se, sobre a questão do lucro na saúde, que estas posições de uma esquerda com pouca visão não resistem a uma pergunta simples e oportuna: será que a indústria farmacêutica que está a produzir as vacinas contra a COVID as vende a preço de custo?
3. O atual presidente contempla, com o distanciamento que lhe convém, esta disputa entre diferentes ideologias, fazendo um pouco a síntese entre posições dissonantes: o SNS é fundamental, mas o setor privado também. Cada um tem o seu papel, como aliás, diz ele, está consagrado na Lei de Bases da Saúde, não estivéssemos nós perante um eminente professor de Direito. É, afinal, a esperada posição de equilíbrio entre público e privado, reveladora do bom senso que nestas coisas deve imperar: supremacia do setor público em complementaridade com os setores privado e social.
Faltará aqui, apenas, ponderar a separação clara entre setores, na formação, no emprego, no agenciamento de doentes, no conflito de interesses, assunto nunca abordado nesta disputa eleitoral.
4. A questão do confinamento tem também merecido diferentes posições por parte dos candidatos. O atual presidente assume as dores de todas as decisões de confinamento até agora anunciadas. Defende-as à luz do superior interesse público e tempera-as com a necessidade de não descurar a atividade económica e social. Raramente foi confrontado com o atraso com que a segunda vaga foi abordada, ou com as tréguas de Natal, que criaram as condições para uma terceira vaga explosiva. Parece existir alguma relutância em aceitar severas medidas de confinamento, sendo que André Ventura, Mayan Gonçalves e João Ferreira, até estão do lado dos que desconfiam das vantagens do confinamento e já deram exemplos reiterados de práticas contrárias.
Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira apostam mais no reforço de meios do SNS, como se a solução para o vírus dependesse disso e não da sua irradicação. Os meios serão sempre limitados e o vírus continuará a consumi-los se não o pararmos. A resposta primordial é mesmo o confinamento e não a disponibilização de mais meios.
5. Sobre o programa de vacinação contra a Covid-19 – afinal a solução definitiva – os candidatos não têm tido intervenções particularmente assertivas. E haveria muita coisa a ponderar: os locais de vacinação, a sua rapidez, a definição dos grupos prioritários, em que as dúvidas e as críticas vão subindo de tom, a caraterização clínica atualizada dos cidadãos, cheia de lacunas comprometedoras que irão, com certeza, criar entropias e injustiças relativas.
Na posta-restante ficam, provavelmente, os principais problemas da saúde com que os portugueses se confrontam: acesso a tempo e horas (veja-se o que se passa agora com os doentes não Covid), proximidade, integração de cuidados e controlo da qualidade. Sobre eles os candidatos têm falado muito pouco.