Em Portugal, é sobre os velhos que se abatem concentradamente todos os ingredientes da desigualdade e da exclusão. Os baixos salários, a precariedade, o desemprego, a habitação sem qualidade, os ritmos de trabalho frenéticos, a concentração nas periferias urbanas e a malha insuficientemente desconcentrada dos cuidados de saúde, que são a condição da vida da grande maioria da população ativa, atiram os velhos para um regime de armazenamento.
Claro que as diferenças sociais não estão ausentes do acolhimento dos velhos – há “clubes sénior” de luxo e há lares clandestinos em que se amontoam pessoas maltratadas e adormecidas. Mas o que predomina em Portugal é essa institucionalização de gente condenada à passividade, à infantilização e a um acompanhamento que quase sempre se reduz à higiene pessoal, às refeições e à medicação.
Demos recentemente, na lei, um passo certo com a adoção do regime do maior acompanhado, alicerçado no primado da autonomia e na valorização dos gradientes da autodeterminação. Mas o que há mais em Portugal é o contraste entre uma lei boa e uma prática má. O regime do maior acompanhado supõe um Estado Social forte como resposta aos desafios do cuidado dos velhos. A resposta concreta que temos para este desafio é um Estado Social fraco, que não se responsabiliza pela provisão direta de serviços, que se limita a ser financiador da oferta privada e social e que se tem demitido de uma fiscalização a sério daqueles que financia. O resultado é a responsabilização das famílias por esse cuidado, com a sobrecarga dos cuidadores informais e a proliferação de soluções de institucionalização ao alcance do rendimento de quem não o tem e, por isso, medíocres.
A multiplicação de surtos de Covid-19 nos lares convoca-nos para uma mudança drástica deste panorama. Nos próximos anos, o acompanhamento dos velhos deve ser uma das apostas estratégicas do País. O reforço do Estado Social para o efeito será um duríssimo combate político contra os poderes estabelecidos. Esse combate terá três frentes principais.
A primeira é a de afirmar um Estado forte na oferta direta de serviços de cuidado e acompanhamento dos velhos. Isso supõe, desde logo, acabar com a segmentação entre o “Estado–Saúde” e o Estado-Segurança Social”, e assumir uma resposta integrada que combine estas duas dimensões. Mas, mais que tudo, supõe uma rede pública de cuidado e acompanhamento, de alcance universal. Ao Estado financiador tem de se substituir o Estado prestador direto de serviços de acompanhamento dos velhos. Isso exige equipamentos e exige um grande aumento do pessoal com formação adequada.
A segunda frente é a do reforço da fiscalização da oferta privada e social. Não é mais tolerável a transigência do Estado para com lares clandestinos ou para com estruturas residenciais de mera armazenagem de pessoas, que não são encerrados ora por falta de soluções alternativas para a colocação dos utentes, ora por falta de coragem dos poderes públicos para enfrentar os pequenos poderes empresariais e locais que sustentam essas situações. Como também não é mais tolerável que não haja padrões públicos de exigência para as práticas de acompanhamento concreto dos velhos institucionalizados, para a formação do pessoal dessas estruturas e para a respetiva fiscalização.
Finalmente, a terceira frente é a da substituição de soluções de institucionalização por outras em que o primado da autonomia e da personalização dos cuidados e do acompanhamento seja o núcleo essencial. Isso passa, desde logo, por privilegiar o apoio domiciliário das pessoas, algo que não pode limitar-se ao minimalismo da higiene e das refeições e tem de envolver a valorização das trajetórias e das competências nelas adquiridas.
Um Estado forte para acabar com a vergonha que são os maiores armazenados e para trazer da lei à prática o regime do maior acompanhado – eis uma escolha política que qualificará a democracia.
(Opinião publicada na VISÃO 1433 de 20 de agosto)