Nasci 15 anos após o 25 de Abril de 1974. Desconheço o que seja viver com parcelas importantes da minha liberdade coartadas. Não sei o que é existir sob o jugo de um poder que oprime tão completamente como experienciaram os meus pais ou, antes deles, os meus avós. Não imagino o que seja ser denunciado, perseguido, preso, torturado ou morto por pensar diferente, por querer diferente, por dizer diferente.
Nem por isso dou por adquirida a democracia ou tomo a liberdade, valor a mim anterior e a mim superior, como algo irrevogável ou indestrutível. A gratidão que merecem os que me legaram uma sociedade de Abril compele-me, pois, a celebrar a Revolução dos Cravos a toda a hora, praticando diariamente a liberdade, comemorando sempre que entendo o triunfo do indivíduo sobre a multiplicidade de formas de repressão que permanentemente nos ameaçam.
Nos últimos dias, a propósito das comemorações do 25 de Abril no Parlamento, em tempos de Covid-19, li e discuti os vários pontos de vista que têm sido apresentados. Prefiro a dúvida sensata que nos convoca para o debate do que a certeza arrogante que nos encerra no dogma. Compreendo, genuinamente, a solenidade da cerimónia na Assembleia da República, não me atrevo a menorizá-la.
No entanto, desassossega-me que um Estado que me impõe medidas draconianas como a impossibilidade de estar com os meus na quadra pascal ou, em última instância, de me despedir de um ente querido na hora da sua morte admita para si mesmo – e para os nossos representantes e respetivos convidados – uma exceção ao confinamento e ao distanciamento social que todas as autoridades de saúde nacionais e internacionais recomendam. Tenho até muitas reticências sobre a mensagem de relaxamento que se transmite à população, mas até isso seria capaz de ultrapassar.
Já a guerrilha ideológica, o entrincheiramento partidário e o policiamento das opiniões são absolutamente inadmissíveis. Volta, não volta, regressamos ao Portugal onde há mais caça-fascistas do que fascistas por metro quadrado. Tenhamos cuidado com quem anda com o “fascistódremo” sempre ligado. Não, ninguém é fascista por defender outros moldes de celebração que não impliquem concentrar uma, duas ou três centenas de pessoas no hemiciclo. Não, não emerge nenhum Salazar de cada um de nós se ponderarmos soluções mais imaginativas para que se assinale esta efeméride. Não, não somos reduzíveis a saudosos e fervorosos apoiantes do Estado Novo se, no limite, por um imperativo de saúde pública, preferirmos somente que cada um comemore, como bem entender, na sua casa ou na sua rua, cantando Zeca Afonso ou José Mário Branco.
A sanidade do debate público dispensa a polarização. É preciso um outro ethos na política e, sobretudo, decisores que ponham a raiva para trás das costas e abdiquem de ajustes de contas ancestrais. Falta-nos gente nova que se paute pelos princípios platónicos: que acredite que é possível argumentar sem discutir; que discuta sem implicitamente suspeitar; que seja capaz de suspeitar sem ceder à tentação da insinuação e da calúnia.
Quem acredita verdadeiramente na liberdade como pilar fundador e como um dos fins últimos das sociedades adultas não deve, apenas por isso, vislumbrar na divergência e no antagonismo sintomas de intolerância ou reflexos de extremismo. É, aliás, a intransponibilidade da fronteira do respeito pela expressão individual que define a maturidade de um modelo de organização social. A democracia não se esgota no voto popular ou na obediência acrítica às preferências dos muitos sobre as dos poucos. A isso chama-se ditadura das maiorias ou, se se quiser, tirania. Era bom que o presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, entendesse isso.
Além de tudo, é tão ingénuo ou sectário – e, por isso, perigoso – presumir que entre os que se opõem ao formato dos festejos só haja empedernidos fascistas como acreditar que do lado oposto apenas existam convictos democratas. Pior que a Covid-19 é o vírus do maniqueísmo. O 25 de Abril exige-nos mais. A todos. Saibamos estar à altura.