Às vezes, alguém diz: “Eh pá, desculpa lá mas não podes estar a falar a sério.” E o melhor, de acordo com a minha experiência, é responder que, de facto, não estamos a falar a sério. Caso contrário, gera-se violência. Sucede, no entanto, que outras vezes alguém diz: “Então mas olha lá, estás a gozar?” E, mais uma vez segundo o que tenho observado, o melhor volta a ser dizer que não, que não estamos a gozar. Caso contrário, também se gera violência. Significa isto que não é saudável falar a sério, e que também não se recomenda falar a gozar. Ora, não conhecendo eu outras modalidades de discurso, tenho optado por, à cautela, ficar calado. O problema surge quando verificamos que também é frequente alguém dizer: “E tu aí caladinho, não é?” E se optamos por manter o silêncio perante essa pergunta, gera-se, receio bem, violência. Resumindo, e em conclusão, parece óbvio que é perigoso falar, seja de que maneira for, e também é problemático estar calado.
A dificuldade de escolher um modo seguro de existir complica-se quando, mesmo nas alturas em que o discurso, seja sério ou gozão, passa sem reparo, alguém observa: “Tu não sabes o que dizes.” É uma afirmação que eu não costumo contestar, não só porque tenho uma auto-estima baixa, mas também porque conheço as armadilhas que as palavras montam. Por exemplo, quando digo que determinado acontecimento foi auspicioso, estou a falar em pássaros. A palavra auspício vem da expressão latina avis spicium, ou seja, contemplar as aves, por causa de um antigo método de prever o futuro: soltava-se um grupo de aves; se o bando voasse para a direita, era bom sinal; se voasse para a esquerda, era mau. Se digo que montei um alarme residencial, revelo o meu carácter belicista: a palavra alarme deriva da locução italiana all’arme, que é um apelo às armas. Portanto, quando digo que a montagem do meu alarme foi um bom auspício, é possível que, sem o saber, eu esteja a exprimir o desejo de pegar em armas para matar um pombo. É complicado.
A expressão que, a este propósito, mais nos ensina, é o “pomo da discórdia”. Quando descobri que a palavra pomo designa um fruto, a minha vida mudou. Nos restaurantes, na hora da sobremesa pergunto sempre: “Em termos de pomos, o que é que tem?” Os empregados, em regra, ficam alarmados. O que não auspicia nada de bom para a minha refeição.
O “pomo da discórdia” original era uma maçã. Eris, a deusa da discórdia, não foi convidada para o casamento de Peleu e Tétis. Mesmo assim, apareceu na boda e deixou uma maçã de ouro com uma nota: “Para a mais bela da festa.” As deusas Hera, Atena e Afrodite pediram a Zeus que decidisse qual delas era a mais bela, mas Zeus entregou a missão a Páris. Para convencer Páris a dar-lhe o prémio, cada deusa prometeu-lhe um presente: Hera disse que o faria rei da Europa e da Ásia, Atena ofereceu-lhe sabedoria e habilidade, e Afrodite jurou entregar-lhe o amor da mulher mais bonita do mundo, Helena de Tróia. Páris deu a vitória a Afrodite, seduziu Helena e deu origem a uma guerra de dez anos. É uma história estranha por várias razões: não ser convidado para casamentos é uma bênção – e no entanto Eris fica magoada; três deusas competem por uma maçã de ouro – uma peça de decoração um pouco kitsch, que não fica bem em casa nenhuma; Zeus, mesmo sendo todo-poderoso, sabe que não é prudente ser jurado em concursos de beleza; Páris, em vez de escolher capacidades que lhe garantiriam várias mulheres, opta por ter apenas uma. Pessoalmente, discordo do pomo da discórdia. E não estou a gozar. Mas também não estou exactamente a falar a sério. E o certo é que acabo por não estar calado.
(Crónica publicada na VISÃO 1409 de 5 de março)