A notícia de que o Tribunal de Contas terá negado a aprovação de uma série de contratos dos hospitais para aquisição de medicamentos, criou o alarme público que se esperava: não sendo adquiridos os medicamentos, os doentes não serão devidamente tratados e poderão ficar em risco de vida, até porque estão maioritariamente em causa fármacos da área oncológica e para doenças raras. Todavia, isso não corresponde à verdade, pelos motivos que irá, com certeza, perceber.
A razão para aquela recusa de visto do TC prende-se com o não cumprimento, por parte dos hospitais, da Lei 8/2012, de 21 de fevereiro, conhecida por “Lei dos Compromissos”. Com esse mecanismo, o Governo de então pretendia impedir o crescimento ilimitado das dívidas dos hospitais, criando para o efeito um travão às suas compras. Só se poderiam realizar novas compras se os Hospitais demonstrassem ter fundos disponíveis para o efeito.
O conceito de fundos disponíveis significa a disponibilidade de curto prazo de cada hospital poder pagar a nova compra que pretende realizar. Assim, e para a determinação dos fundos disponíveis entram, nomeadamente, as dotações corrigidas dos cativos, as transferências do OE, as receitas próprias previstas (todas esta rubricas estimadas no acumulado dos 3 meses seguintes) e eventuais transferências do QREN ainda não efetuadas, mas cujas faturas já foram pagas. Para 2020, prevê-se o alargamento para 6 meses do prazo atrás referido, o que pode permitir mais folga aos hospitais. É uma tentativa de remendar uma Lei descontextualizada da realidade económica e financeira da nossa rede hospitalar.
Deveria ser óbvio para o legislador (de então como o de agora) que a suborçamentação crónica dos hospitais não permitiria, à sua grande maioria, cumprir com rigor a Lei dos Compromissos. Se os hospitais, logo à partida, têm orçamentos, nalgumas rúbricas, que apenas lhes dão para o primeiro semestre do ano, levar à letra esta Lei, estrangularia a atividade prevista para o diagnóstico e o tratamento de milhares de doentes, ou seja, e no limite, à negação de auxílio perante a doença. Os chumbos frequentes do TC para todo o tipo de fornecimentos (da alimentação, à roupa e limpeza, a serviços médicos externos, até aos medicamentos) é, portanto, a consequência lógica de uma lei impraticável. O resultado desse irrealismo é que os hospitais continuam a violar a Lei dos Compromissos todos os dias, utilizando diversos expedientes. Mesmo, note-se, com a responsabilidade que a Lei faz impender sobre os dirigentes em matéria cível e criminal. E a razão para essa violação é a necessidade imperiosa de tratar os doentes conforme o estado da arte, ou seja, de acordo com as melhores práticas reconhecidas e ao nosso alcance. Isso não significa que se deva tolerar o uso indiscriminado de recursos, por má prática, moda, desorganização ou outras razões. O controlo orçamental é imprescindível, mas os seus fundamentos têm que ser realistas e leais para quem todos os dias gere recursos escassos e tem que responder a um número crescente de doentes com patologias mais complexas e dispendiosas.
É do domínio público que os hospitais do SNS (excluindo as PPP) vêm acumulando um elevado stock de dívida ao longo dos anos. Reportando-nos a Novembro de 2019, os 5 hospitais em pior situação tinham uma divida a fornecedores na casa dos 410M€. E estão em causa os grandes hospitais centrais, pese embora todos eles apresentem situação deficitária, à exceção de três hospitais especializados, nas áreas da psiquiatria e da medicina física e de reabilitação, com custos mais baixos. Isso não tem impedido que a todos os doentes sejam prestados os cuidados adequados e necessários às suas circunstâncias, mesmo quando estão em causa medicamentos inovadores já aprovados ou em fase de aprovação. As Administrações hospitalares assumem o risco de aquisição utilizando expedientes vários, mais ou menos regulares, sobrepondo os direitos dos doentes a outras disposições legais. É por isso que perante o alarme anunciado pelos media, os hospitais responderam com a verdade, ou seja, que nenhum doente foi impedido de aceder às terapêuticas clinicamente consideradas como as mais adequadas, pelo facto do TC ter invocado o incumprimento da Lei dos Compromissos.
No caso dos medicamentos, a evolução do consumo hospitalar prova de forma objetiva o que as Administrações vieram dizer. Na área oncológica, e só em 2019, o aumento da despesa hospitalar em medicamentos foi superior a 13% – incomensuravelmente acima do aumento do PIB e muito superior ao aumento registado nas despesas do SNS – cifrando-se, no final do ano, num valor muito próximo dos 400M€ (cerca de 30% de toda a despesa hospitalar com medicamentos). E isto apesar da Lei dos Compromissos.
A Lei dos Compromissos é, assim, esvaziada na sua aplicação: as dívidas dos hospitais aumentam e as compras necessárias continuam a ser realizadas, porventura de forma mais onerosa para o erário público. É por isso uma Lei fora da realidade, com efeitos perversos, adotada numa época em que se pretendia mesmo reduzir o acesso ao SNS e promover a sua substituição pelo setor privado, financiado pelos subsistemas e pelos seguros de saúde, aliviando, deste modo, o esforço público. Os tempos parecem ser felizmente outros, só não se percebendo porque é que o legislador se mantém aprisionado a esta inqualificável Lei dos Compromissos. Aprovem-se orçamentos realistas para os hospitais, estabeleçam-se regras claras com os gestores e direções clínicas para o seu cumprimento, monitorização e benchmarking, e acabe-se com a Lei dos Compromissos.