Madrepérola é o meu novo disco. Madrepérola para aludir à maternidade, já que foi gravado durante e logo após uma gravidez, num processo de longa gestação, e também por ter como mote a frase de Rubem Alves (autor e pensador brasileiro) – Ostra feliz não faz pérola. É que as ostras só fazem pérola quando têm um grão de areia a incomodá-las. Vão cobrindo o grão de areia com uma baba e acabam por fazer uma pérola, numa metáfora perfeita para isto da gestão dos incómodos da vida e sua sublimação em arte e amor. A música e a maternidade têm tanto de beleza e abnegação, como de desconforto e superação. Não é por acaso que a ideia de “criação” serve para a arte e para os filhos.
O exercício de composição do disco cumpre a metáfora que o inspirou, tomando os temas, mesmo que sérios, pelo lado solar (por via da ironia, do humor, da poesia e da energia dançável da música), fazendo pérolas dos nossos incómodos e arte dos nossos caquinhos (como Gaudí). É para isso que me serve o exercício artístico. Catarse e digestão. Tornar suportáveis as dores da existência e as injustiças do mundo. Calçar outros sapatos (para viver outras vidas, dançando). Ensaiar a imortalidade. Ambicionar a intemporalidade. Ser livre.
Sendo um disco muito pessoal, é partilhado. Tem muitos produtores, convidados, instrumentistas. Tem referências, samples, citações, excertos e vozes que indicam a genealogia da minha inspiração. Tem fado, tem samba, tem literatura, tem calão. Sendo sempre um disco de rap. Além disso, tem muitas destas crónicas, ora porque migraram em frases intactas para as minhas rimas, ora porque houve uma transfusão de temas, ora porque o exercício de escrever prosa quinzenalmente sem folgas exercita o músculo criativo e traz truques novos.
Como um parto, é um disco de superação e renascimento. Fazer discos é difícil, leva tempo (um tempo que não se coaduna com o tempo do mercado). O tempo da vida e da arte. Sendo que este foi especialmente vivido e especialmente longo. É um disco feliz, mas profundo. Um retrato. Feliz como esta fase da minha vida e profundo como a experiência da maternidade. É o melhor que já fiz (mesmo que ninguém venha a concordar).
Fala do ofício de fazer canções e dos meus embates com o lado menos romântico da indústria. Fala do Porto, habitado e castiço onde quero continuar a viver. Fala sobre a gravidez e a cadeia matriarcal de sementes que nos ligam simbólica e biologicamente. Fala do mundo cansativo e ruidoso em que vivemos e deste quotidiano esmagador, saturado de estímulos, que nos faz sentir sempre insuficientes. Fala da minha ilha favorita. Fala de um tempo, depois de nós, em que todo o chão voltará a ser floresta. Fala das redes sociais e da sua exigência de perfeição, da ilusão de cidadania online, da mercantilização da vida privada e da contabilização e comparação permanentes de popularidade. Fala sobre as ancestralidades múltiplas, das quais derivam as nossas identidades híbridas e em constante mutação. Fala sobre mulheres fortes e inspiradoras. Fala de amor. E fala dos últimos meses da minha vida.
Só mesmo por romantismo e inveterada teimosia se faz discos hoje em dia. Passamos meses (ou anos) numa autêntica corrida de obstáculos, investimos sangue, suor e lágrimas (já para não falar de dinheiro), e a voragem trituradora de novidade esgota o seu consumo em poucos dias. Na era das playlists, muito poucos ouvirão as músicas todas, pela ordem certa, nem que seja uma única vez. E, por isso também, tenho de agradecer aos que partilharam tantos meses de trabalho comigo, acreditando que a música nos recompensa no processo e que tem valor intrínseco. Agradecer a todos os que cabem na ficha técnica, ajudando-me a pendurar mais uma medalha na lapela (a mais brilhante). E agradecer (sobretudo) ao Pedro e ao Romeu, que viveram dois partos comigo (num só ano). Este disco é deles.
(Crónica publicada na VISÃO 1403 de 23 de janeiro)