A Saúde ocupou, em 2019, o primado das notícias e da controvérsia pública. É o tema que mais preocupa a vida individual dos portugueses e o envelhecimento acelerado da nossa população acentua essa primazia.
Destacaria, dos acontecimentos registados no ano que agora terminou, alguns factos e polémicas que alimentaram boa parte da discussão pública:
- O caos na Saúde
Foi esta, provavelmente, a expressão mais utilizada por muitos dos protagonistas (Ordens, jornalistas, sindicatos e partidos políticos). Apareceu sempre associada ao subfinanciamento.
Foi um trunfo político importante para quem fez oposição ao Governo, mas muitas vezes sem um conteúdo explícito que o confirmasse. A apresentação de casos específicos, num conjunto de milhões de atos clínicos diariamente prestados, não chega para se falar em caos generalizado. O “périplo pelo caos”, patrocinado por algumas ordens profissionais, não passou dos assuntos menores, sem importância estratégica, e logo terminou como um rotundo fiasco. E até no caso das mortes maternas o tiro saiu pela culatra.
Verificou-se, curiosamente, que os casos mais comprometedores para a imagem do SNS, não tiveram na origem a falta de recursos, antes falhas graves de organização, de supervisão, de atitudes e de comportamentos.
O recente relatório da OCDE ,“Health at a Glance”, saído em outubro, coloca Portugal, em 2018, como um dos países que obteve melhores resultados em Saúde, utilizando menos recursos. Ninguém parece ter notado e o Governo não soube utilizar este trunfo.
- Lei de Bases da Saúde
Foi uma acesa polémica que preencheu boa parte do ano, com epicentro na Assembleia da Republica aonde se discutiam as diferentes propostas de alteração. A Esquerda parece ter triunfado e a Lei foi alterada, reduzindo a margem de participação do setor privado e social.
Mas terá sido uma vitória de Pirro, pois continuaremos a assistir, sem controlo sério e rigoroso, à transferência significativa de recursos públicos para os prestadores privados, como complemento à inépcia dos serviços públicos, nas mais diferentes áreas: meios complementares de diagnóstico e terapêutica, cirurgias, consultas e internamentos, num valor correspondente a cerca de 17% do Orçamento do SNS.
- PPP nos hospitais
Foi mais um triunfo da Esquerda, assente na supremacia da ideologia face ao pragmatismo, à racionalidade e à verdade dos factos. Não haverá mais PPP de gestão clínica, exceto, eventualmente, aquelas que já existem. Destas, a PPP de Braga terminou em Agosto e a de Vila Franca terminará brevemente. O Governo tomou aqui uma péssima decisão, porque abdicou de um modelo de gestão que deu bons resultados para os cidadãos, foi mais económico e serviu de benchmarking para os hospitais EPE. Todos os estudos o provaram e o recente Relatório do TC sobre a PPP de Vila Franca de Xira comprovou-o à saciedade. As PPP na Saúde são uma experiencia de sucesso e ganharam prémios de excelência em competição com todos os hospitais da rede pública. Um péssimo trunfo jogado por uma certa Esquerda, que o Governo comprou sem qualquer justificação plausível e ao arrepio de todos os relatórios de que dispunha. Uma enorme contradição e um enorme falhanço!
- Listas de espera
É um problema crónico que perpassa por toda a Europa. Sempre haverá listas de espera, até como forma de regularizar a procura. Mas os tempos de espera que por vezes encontramos nos nossos hospitais e nos Cuidados de Saúde Primários são inaceitáveis. Marcar consultas para um ano e meio de vista envergonharia qualquer Diretor de Serviço ou Conselho de Administração. Ter uma procura de médico de família em doença aguda com cerca de 70% de não respostas no próprio dia, representa a negação da medicina de proximidade e de primeira instancia que deveria representar. Mas isto continua a acontecer no nosso SNS. É por falhas destas que a procura do setor privado cresce, mas infelizmente só para alguns.
É verdade que o SNS está hoje mais atento aos tempos de espera dos doentes prioritários, que estão em níveis que podemos considerar satisfatórios. Mas há um longo caminho pela frente em matéria de organização do trabalho, flexibilidade de horários e esforços adicionais remunerados para acabarmos com esta chaga.
- ADSE
Este subsistema, reservado a funcionários públicos e familiares diretos, esteve na berlinda por maus motivos: insolvência anunciada, quotizações muito elevadas, insuficiências de gestão, permissividade ao sobreconcumo, são alguns dos falhanços que se apontam à ADSE.
Não há duvida que o modelo de seguro em causa tem os dias contados. Não é possível continuar com um regime de benefícios ilimitados e solidário, quando o universo de utilizadores envelhece e precisa de mais cuidados. A agravar este cenário, a ADSE não dispõe de instrumentos de managed care que lhe permita entender a pertinência das prestações e a sua conformidade com as patologias em causa. Um enorme falhanço que exige muita coragem para ser resolvido. A saída do Ministério da Saúde da sua gestão irá seguramente agravar os problemas.
- A falta de médicos
A Ordem e os sindicatos médicos colocam este tema como prioritário, representando para eles o principal problema do SNS. Faltam médicos nas urgências, no Algarve, em Almada, no interior do país e nalgumas especialidades. Por esta razão, dizem, as consultas e as cirurgias estão atrasadas e as urgências a abarrotar e com atrasos inaceitáveis. Todavia, o recente relatório da OCDE, já citado, refere que Portugal apresenta um número confortável de médicos (cerca de 4 por mil habitantes) o que nos coloca acima da média daqueles países.
O Governo tem promovido a entrada de mais médicos, abre concursos para ingresso e para acesso, para internos e para seniores, e criou zonas carenciadas em que os médicos podem auferir até 40% mais do seu vencimento – base e ter outras regalias de instalação e formação.
Nada parece resultar. Os concursos ficam, em parte, desertos e os médicos continuam a preferir ficar nos grandes centros urbanos de Lisboa, Porto e Coimbra, aonde residem 70% destes profissionais. Depois, e fora dos concursos, há alguns hospitais que os contratam ou preferem trabalhar para empresas de trabalho temporário, de forma precária mas a ganhar muito mais.
A colocação de médicos aonde são necessários é um dos maiores falhanços do nosso SNS, que dispõe de médicos em número suficiente. A Ordem diz que devemos respeitar as preferências destes profissionais. Pois, mas o interesse público diz outra coisa. Em que ficamos?
- Propostas eleitorais
As eleições de outubro foram uma boa oportunidade para percebermos as opções dos partidos políticos para o setor.
À Direita, e com alguma surpresa, diga-se, não surgiram propostas de fortalecimento do SNS. Pelo contrário, PSD e CDS preferiram propor o uso alternativo de serviços privados face à incapacidade do SNS: ADSE para todos, médicos de família contratados ao setor privado, consultas e cirurgias fora de tempo realizadas, à escolha, no privado, e o SNS a pagar.
À Esquerda, o PCP surpreendeu com a proposta de fazer regressar os Hospitais EPE as setor público administrativo. Um retrocesso insuportável.
Foram péssimos trunfos que não resultaram no dia da votação. Grandes falhanços.
- Urgência pediátrica de Almada
O seu encerramento noturno criou a revolta dos utentes e provocou a crítica de todos os quadrantes políticos. Já aqui demonstrei que Almada tem médicos de família e pediatras suficientes.
Má organização do trabalho, prerrogativas de idade absolutamente injustificáveis e incumprimento de regras de funcionamento nas USF, conduziram a uma situação em que o Governo preferiu ceder a intervir. Triunfaram os prevaricadores e perderam os utentes.
- O bébé sem rosto
Este terrível acontecimento foi apenas a ponta de um iceberg profundo que mal se conhecia.
A Ordem dos Médicos não tem nenhum controlo sobre a prática dos seus inscritos. Se são especialistas numa área, nada os impede de exercer noutra especialidade. Se não têm especialidade podem praticar qualquer uma.
Se associarmos a este contexto, a inexistência de qualquer cadastro atualizado dos médicos, quanto aos seus locais de trabalho e descrição de atividade e resultados, ficamos a perceber a gravidade da situação. Os cidadãos estão indefesos perante a irresponsabilidade na prática clínica, o que deveria ser missão central da Ordem dos Médicos, combater e prevenir. Vale-nos a qualidade da formação e, em geral, a competência reconhecida dos nossos médicos. Um falhanço da Ordem e da ERS, que também parece não ter meios nem disponibilidade para certificar instalações e equipamentos médicos.
- O peso das Urgências
É talvez o maior falhanço da última legislatura, em que muito se apostou na tentativa de reduzir o volume de urgências e fortalecer o trabalho de primeira instância nos cuidados de saúde primários. O peso das urgências é, em Portugal, um fenómeno que põe a nu a incapacidade dos serviços de proximidade. Temos cerca de 0,7 urgências por cada português por ano, um número muito superior aos nossos congéneres europeus. As urgências são um sorvedouro de recursos humanos e consomem uma parte substancial dos recursos hospitalares, que muita falta fazem no trabalho programado. E não se registaram em 2019 sinais de abrandamento na afluência, sempre com um volume de inapropriação na casa dos 50%, a acreditar na triagem de Manchester. Valeria a pena perceber quem são os médicos de família dessa procura excessiva e perceber o que se passa na sua relação com os seus utentes.
Criar USF, primeiro, USF do tipo B, no passo seguinte, e aumentar prémios e honorários, sem que isso resulte numa alteração nos modelos de acesso, e com a agravante de termos já mais de 95% da população coberta com médico de família, não é nada tranquilizador quando percebemos que tudo continua na mesma. É um rotundo falhanço, e o pior é que ninguém é responsabilizado e nada se corrige.