O nascimento de um bébé com graves malformações ao nível da face alertou as autoridades, desde o Governo, à PGR e à Ordem dos Médicos, sobre uma eventual má pratica médica de enorme gravidade e até com repercussões na imprensa internacional.
O caso foi denunciado pela família, permitiu aprofundar informações sobre o médico em causa e constatar eventuais situações similares no seu passado clínico, ainda em processo de análise na OM. Importa referir que, neste caso, a grávida era acompanhada em privado (aonde terá realizado as ecografias de controlo), mas o parto foi realizado no Hospital de Setúbal sob a orientação do mesmo médico que, mera curiosidade, parece que não tinha autorização ou competências para realizar tais exames.
Há, neste caso, várias circunstancias que nos merecem uma reflexão, serena mas aprofundada, sobre o que podemos melhorar no futuro, para que estas situações dramáticas se evitem.
Desde logo as competências médicas para o exercício da prática clínica que exigem conhecimento, experiência e resultados demonstráveis. A OM não tem nenhum dispositivo de controlo que permita saber, sobre cada médico, se ele está atualizado e capacitado para o exercício de determinado ato técnico, mais ou menos complexo, nem sabe em que locais ou instituições trabalha.
A grande maioria dos diretores de serviço hospitalares não utiliza indicadores de qualidade do desempenho dos seus médicos e não tem condições para, de forma objetiva, apresentar os resultados qualitativos do seu serviço, o que noutros pontos do mundo já se faz com alguma regularidade. A OM também não tem mostrado particular interesse neste tema, desconhecendo a qualidade clínica do que se faz no setor público e no setor privado.
Se, por exemplo, averiguarmos junto dos setores público e privado as taxas de cesariana, ficaremos surpreendidos com a diferença abissal de valores e com a falta de explicação técnica para essas diferenças. E estamos perante um problema grave de saúde pública, sobre o qual nenhuma autoridade se preocupa.
Não há,assim,na esfera da OM, instrumentos credíveis e transparentes que permitam nortear a avaliação do desempenho médico, atuar preventivamente sobre instituições, serviços ou profissionais que terão que melhorar os seus desempenhos, ou antecipar decisões sancionatórias de forma racional e expedita perante desvios evidentes, face a resultados esperados com base nas melhores práticas. A atuação corrente, de esperar pelas reclamações (no caso em apreço reiteradas), desenvencilhar-se das que não têm qualquer fundamento e passar à averiguação, morosa, burocrática e defensiva, das que possam ter alguma justificação, está comprovadamente fora do nosso tempo, em que se exige, antecipação, prevenção, avaliação sistemática, melhoria e, sobretudo, proteção e garantia de qualidade para os cidadãos, de facto a principal finalidade da OM.
Seria importante que a Ordem se começasse a interessar por este tipo de informação e estabelecesse formas colaborativas com os Hospitais, Centros de Saúde e Ministério da Saúde para adotar metodologias de monitorização e avaliação do desempenho médico dos nossos serviços, públicos e privados.
É, por isso, com algum otimismo que vimos a OM aderir ao projeto do Value Based Health Care (VBHC), introduzido recentemente em Portugal através dos estudos de Michel Porter. De facto, ao tentar identificar os ganhos obtidos por um doente, a partir de um ciclo de prestação de cuidados, mais ou menos prolongado, vamos perceber melhor a efetividade da prática clínica, os benefícios físicos e mentais, funcionais e sociais que resultaram desse ciclo, e comparar resultados entre entidades ou profissionais. Com este trabalho percebemos realmente aonde estão as melhores práticas, não apenas de um ato ou intervenção médica, mas de uma equipa plural nas competências, mas atuando de forma integrada para criar valor àquela pessoa em concreto.
No caso do bébé sem rosto ficamos todos a perceber que o valor criado para aquele recém-nascido, para aquela mãe e para aquela família foi dramaticamente negativo. Mas também ficamos a perceber que a avaliação do desempenho médico não pode ser feita apenas no fim do ciclo de prestação, quando já nada há a fazer. Há pontos críticos no processo de prestação de cuidados que devem, imperativamente, ser avaliados: as competências, a prática e, neste caso, as condições das instalações e dos equipamentos utilizados, podiam e deviam estar sob permanente avaliação por parte da OM e da ERS, que têm, na matéria, especiais responsabilidades.
Não se pense que a ênfase posta neste caso é representativa da prática médica portuguesa. O país tem uma excelente formação médica e os profissionais são genericamente de elevada craveira. Os resultados globais que o país apresenta são, aliás, a prova dessa excelência. Mas a bem da preservação dessa qualidade e da segurança intrínseca à prestação de um ato médico, é indispensável que se avalie e se demonstre o valor criado pelos nossos profissionais e se identifiquem e previnam práticas menos corretas ou claramente inaceitáveis. Há muito trabalho pela frente e um longo caminho a percorrer para alterar mentalidades e padrões de atuação manifestamente ultrapassados. A colaboração de todos – Governo,Ordens, profissionais, administrações, doentes e entidades com competências de regulação – é sempre bem-vinda e fortalece esta missão.
A judicialização da medicina pode indemnizar mas não salva vidas.