Meter a louça na máquina: os copos todos virados de pernas para o ar, naquelas bandanas laterais das máquinas de lavar, aqueles varandins. Uma pessoa mete um copo, mete outro, depois outro. Permitindo o momento em questão uma ligeira suspensão, uma pausa para um pequeno suspiro, pegue-se num copo e olhe-se bem para ele, através dele, contemplando-o em toda a metafísica nele contida, apesar de vazio. Segure-se o pequeno e frágil objeto de vidro a uma distância considerável do chão, a uma distância que permita que a gravidade opere a sua impecável e inclemente força magnética. Agora alivie-se ligeiramente, um quase-nada, os músculos dos dedos. Basta uma brevíssima e leve cedência dos tendões e dos músculos das falanges e do metacarpo. Agora observe-se o objeto a ser tragado pela impaciência do chão que o reclama. Contemple-se agora o amontoado disperso de cacos, grânulos de vidro, pó transparente, pedacinhos cintilantes, pedrinhas que brilham, que se espalham em espiral. Fica um rasto de destruição em que a mesmíssima matéria, disposta agora sob outra forma, torna imprestável o uso que lhe estava destinado, a diligente tarefa de transportar líquidos. O esforço foi diminuto: bastou aliviar ligeiramente a (já de si, pouca) força que os dedos empregavam para o segurar. O esforço de segurar um copo na mão já não é muito. O de o largar, menor ainda. Não custa nada desfazer, destruir um copo. Depois de varrer convenientemente os destroços, pense-se agora no que custou fazê-lo. Há que rebobinar a mente até ao primeiro copo de vidro que o esforço humano pariu neste terceiro calhau a contar do sol. A empreitada que foi agregar estes elementos separados neste sentido, o de transportar matéria líquida. O domínio do fogo, a alquimia, a cerâmica, as insónias, as patentes, a Revolução Industrial, os acertos salariais dos operários nas fábricas, as engrenagens, as máquinas, a gasolina das carrinhas de distribuição, a saraivada de buzinas no cortejo de viaturas paradas à espera de que a carrinha que trouxe as paletes de copos desse a vaga, o imenso sacrifício criativo, a intrincada teia de acontecimentos numa cadeia de eventos, um rol infinito de olheiras e de inquietações até chegar ao milagre evolutivo que é este objeto, um simples copo. Volte-se ao que custou desfazê-lo. Fazer custa sempre impensavelmente mais do que desfazer. Fazer é menos provável, mais difícil, menos conveniente. Desfazer é fácil, parece que toda a dinâmica do mundo favorece essa simples tarefa: a gravidade, a marcha implacável do tempo, as regras, a inércia, a falta de vontade. Não é preciso muito para desfazer. Não é preciso nada. Abandone-se por exemplo um grandioso, robusto e firme palácio à marcha inexorável do tempo e a morte vai amarelando as paredes, a humidade lança as suas garras implacáveis e, em pouco tempo, a Natureza reclama todo o amontoado de pedra e de cimento a que outrora alguém chamou casa e a muito custo ergueu. Fazer é difícil. É sempre um gesto de resistência perante a entropia do universo. Implica saber que, por mais que se faça, como quer que se faça, o que quer que se faça, um dia será desfeito. E no entanto nós ainda aqui. A criatividade parece vir acompanhada por uma força vital qualquer que não se apaga. Talvez seja essa a vitalidade, a criatividade, a força que os cristãos chamam “Espírito Santo”, os budistas chamam “Ki” e os hindus chamam “Prahna”. Não há nada em que “acreditar”. Basta pegar num copo, olhar bem para ele, através dele, aliviar ligeiramente os músculos dos dedos e espetar com ele no chão. Convém é estar convenientemente calçado durante o decurso da experiência.
(Crónica publicada na VISÃO 1366 de 9 de maio de 2019)