Não é à toa que São Salvador da Bahia de todos os Santos tem o epíteto de Roma Negra. É que se Roma é a capital da religião católica, Salvador, além de ser o Vaticano do candomblé, tem uma população maioritariamente negra e orgulhosa disso. A ancestralidade africana do povo de Salvador transpira, não apenas na melanina, mas sobretudo na admirável capacidade de manter tradições, manifestações culturais, formas de estar, de comer e de vestir, durante centenas de anos, contra a mais cruel das opressões – a escravatura.
A cultura como acto de resistência, manifesta-se a cada canto e em cada corpo. Nas aulas de capoeira que fazem ecoar o berimbau das janelas dos primeiros andares para a rua. Nas lojas de capulanas, de colares e trajes cerimoniais. Nos terreiros de candomblé. Nos grupos de percussão e seus instrumentos ancestrais. Nos menus dos restaurantes baianos. Na etimologia das palavras que se misturam com o português. Nas bancas dos feirantes no mercado de São Joaquim, cujos produtos poderiam ser encontrados num qualquer mercado de Luanda. Entre muitos e belos outros detalhes.
Falo em resistência porque durante séculos grande parte dessas manifestações eram proibidas e fortemente castigadas. A capoeira, arte marcial de origem angolana, praticada pelos escravos, não era permitida e desenvolveu-se na clandestinidade. O candomblé, religião afro-brasileira, sofreu repressão policial até ao século XX, e só passou a ser legal quando o escritor Jorge Amado (eleito deputado pelo Partido Comunista) conseguiu fazer passar no congresso brasileiro um decreto de lei que estabelecia a liberdade religiosa em todo o país. E o uso de línguas e dialectos africanos, muitas vezes misturados em línguas francas que uniam escravos de etnias diferentes, era castigado pelos senhores de engenho.
O êxodo do povo africano para o Brasil e mais concretamente para Salvador, foi forçado pelo comércio escravocrata do império português, como foi forçada a evangelização e aculturação colectiva. Sendo prova de grande resistência popular a longevidade de todas estas tradições e a forma como, na cidade, se vai celebrando a ancestralidade.
É sintomático encontrar a estátua de Zumbi dos Palmares, o maior líder dos quilombolas, herói da luta da libertação dos escravos brasileiros, em bronze e imponência, em plena Praça da Sé. Entrar na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e encontrar o povo do candomblé, vestido de branco, de turbante e colar de missangas, celebrando o seu sincretismo. Ou ver São Benedito, o santo de rosto negro, descendente de escravos, em quase todas as igrejas e capelas da cidade. E sobretudo, não encontrar o pelourinho no largo com o mesmo nome, como sinal de que o tempo da escravatura acabou e que a simbologia da tortura foi substituída pelo orgulho do povo negro.
O próprio sincretismo, que mistura as devoções do candomblé e do catolicismo, é prova de resistência do povo afro-baiano. Já que foi a adoração dos santos católicos, numa secreta correspondência aos orixás, que permitiu a transmissão daquela matriz religiosa animista, de geração em geração, durante séculos de clandestinidade. E na cidade em que Nossa Senhora da Conceição é Iemanjá e Jesus Cristo é Oxalá, a América do Sul é em África e o português soa a iorubá.
Além de tudo isto (e muito por isto mesmo), Salvador é uma cidade imperdível. A mistura do casario português, com a flora tropical sul-americana, o povo e a cultura afro-brasileira, o clima doce, a comida boa, e aquele marzão azul, é a receita que justifica a predilecção de Caetano, a devoção de Amado e esse borogodó que nos faz querer voltar depressa.
(Crónica publicada na VISÃO 1332, de 13 de setembro de 2018)