A Associação de Médicos Católicos Portugueses (AMCP) apelou ao Presidente da República para vetar a lei que permite a mudança de género no registo civil, a partir dos 16 anos, sem necessidade de relatório médico. Como sempre, o grupo fala de “ideologia de género” – um slogan usado contra o progresso há várias décadas – e alega que a lei traz consequências graves para a saúde pública e que não foi pedida pelos médicos. A AMCP alega ainda que não há base científica para esta lei e que é fundamental a intervenção dos médicos, atestando a existência de “disforia de género”. Depois, claro, não faltam os argumentos relativos à proibição de beber antes dos 18 anos (embora se esqueça que aos 16 anos podemos casar e ser penalmente imputáveis).
Vamos por partes.
A Lei n.º 7/2011, de 15 de março, em vigor, já permite, atualmente, a maiores de 18 anos, a mudança de sexo e de nome no registo civil àqueles que manifestem uma identificação de género não sintónica com o sexo que lhe foi atribuído à nascença, mediante relatório que comprove esta “perturbação”, elaborado por equipa multidisciplinar de sexologia clínica, sem depender de processo judicial.
A proposta do Governo aprovada na AR surge na sequência da evolução de conceitos, preconizados por resoluções do Parlamento Europeu ou do Conselho da Europa e da OMS, no sentido de retirar os transtornos da identidade de género da lista de transtornos mentais e comportamentais e abolir a esterilização e outros tratamentos médicos como requisitos para o reconhecimento da identidade de género nos processos legais para a mudança de sexo e de nome, afirmando a autodeterminação de género de cada pessoa como um direito fundamental e uma parte incindível do direito ao livre desenvolvimento da personalidade.
Ou seja, se a transexualidade não é doença, os médicos não têm de intervir na definição de quem somos. Esse é o ponto. Por outro lado, espanta-me que médicos falem em “disforia de género” como requisito para a mudança de sexo e de nome no registo civil. A “disforia de género” não é uma condição identitária. É o sofrimento específico que uma pessoa trans pode sentir por causa da transfobia. Esse sofrimento deve ser acompanhado, mas seguindo a lógica dos médicos católicos (sem ideologia alguma, presumo) uma pessoa trans que não sofra de “disforia de género” não deve, imagine-se, poder alterar o sexo e o nome no registo civil.
Por outro lado, só está em causa – insista-se – a mudança de sexo e de nome no registo civil. A proposta de lei aprovada na AR não tem nada a ver com saúde, pelo que não tem quaisquer consequências na saúde pública.
Quem pediu a lei? Não foi, claro, a AMCP. A lei foi exigida pelo consenso da comunidade científica, por décadas de estudos disponíveis a qualquer pessoa interessada, pelos organismos internacionais a que pertencemos e, sobretudo, pelas pessoas de carne e osso unidas em associações que as representam.
Gente que ouvimos na AR, rapazes e raparigas que, muito antes dos 16 anos, sabem quem são – eu sei que sou mulher desde criança –, rapazes e raparigas que sobrevivem a obstáculos diários com o apoio das suas mães, também ouvidas no Parlamento. São estas associações e estas pessoas que têm o pensamento mais estruturado sobre a matéria e não a AMCP. Sabem
o que é saber-se rapaz num corpo de rapariga, alterar esse corpo naquilo que não é irreversível enquanto não se atinge a maioridade,
e suar de cada vez que têm de ver o seu nome na pauta de notas da escola, suar de cada vez que têm de mostrar o passe social ou o cartão de cidadão.
Ideologia de género, a sério? Espero que o Presidente da República ouça os médicos, psicólogos, juristas, especialistas e, sobretudo, as associações de defesa dos direitos das pessoas trans que se pronunciaram
no Parlamento durante meses até à aprovação da lei.
Apesar de nos ter sido demonstrado que cada pessoa sabe quem é muito antes dos 16 anos – confundir a certeza sobre a identidade de género com a idade para beber é ofensivo –, a nova lei elimina o requisito de relatório médico para o registo civil da mudança de sexo e nome (que passa a ser possível a partir dos 16 anos com autorização dos pais).
As pessoas de carne e osso que choraram no Parlamento quando assistiram à aprovação da proposta de lei dispensam caricaturas. Ninguém muda de sexo e de nome no registo “porque sim”, tipo desporto. Este diploma tem precedentes, por exemplo, na Dinamarca, na Irlanda, em Malta e na Noruega. Nesses países, as pessoas trans saíram dignificadas e nenhum dos fantasmas levantado pela AMCP se verificou.
em sempre é fácil entender uma realidade que não é a nossa. Mas a empatia é uma escolha.
(Artigo publicado na VISÃO 1312, de 26 de abril de 2018)