A notícia, avançada esta semana, de que 40% da despesa do Estado com a comparticipação de medicamentos pode resultar de fraude, é demolidora. A estimativa, realizada pela Inspeção Geral das Finanças, resulta da análise de uma amostra de três milhões de euros de despesa, na qual se detetou que uma parcela de 1,2 milhões era irregular. Mais uma dimensão do Estado Social que se deixou minar por uma falha da Justiça.
Segundo os dados da Pordata, em 2009 os encargos suportados pelo Serviço Nacional de Saúde com medicamentos foram, a preços constantes (ou seja, descontando os efeitos da inflação), o triplo dos realizados duas décadas antes. Este aumento da despesa pública com a comparticipação de medicamentos – que se fixou em 1559 milhões de euros, em 2009 – foi secundado pelo crescimento das despesas realizadas pelos utentes, que praticamente também triplicaram nesse período, passando para 724 milhões de euros.
O aumento das despesas com medicamentos é apenas uma das facetas do crescimento das despesas com a saúde. Este prende-se com várias razões.
Por um lado, a sociedade portuguesa assumiu como um direito, desde meados da década de 1970, a existência de um Serviço Nacional de Saúde, universal e financiado, em parte ou no todo, pelo Estado. Para cumprir esse desígnio, desde 1979 que se tem vindo a edificar uma rede pública de prestação de cuidados de saúde – constituída sobretudo por centros de saúde e por hospitais – e a capacitá-la com um vasto conjunto de profissionais (note-se que em Portugal a proporção de médicos face à população está em linha ou acima da média da UE). Esta maior capacitação em recursos humanos está associada a uma maior capacitação em termos de equipamentos, ferramentas de diagnóstico e de terapia, muito mais sofisticados que no passado e, por isso, mais onerosos.
Por outro, as transformações demográficas também contribuiram. Portugal, em linha com o que aconteceu noutros países, “envelheceu”. A fatia da população com mais de 65 aumentou significativamente, passando a representar 17,5% dos residentes, mais do que a média da UE (17,1%). E neste grupo etário a percentagem da população com 80 e mais anos tem registado um aumento particularmente significativo. Ora, é sabido que o avanço na idade está também ligado às maiores necessidades ao nível dos cuidados de saúde, nomeadamente no que respeita ao consumo de medicamentos.
Acresce ainda que o aumento da instrução mudou o modo de os indivíduos encararem os problemas de saúde. A leitura determinista da vida e o recurso pontual ou esporádico aos cuidados médicos deixaram de ser a regra. Verificou-se uma verdadeira “medicalização” da sociedade portuguesa, disparando a procura de medicamentos, de profissionais de saúde e de serviços de apoio médico.
Estas são algumas das razões “naturais” para o aumento das despesas. Nesta equação, sem sabermos ao certo o peso de cada uma das parcelas, existem, contudo, outros factores que não podem ser negligenciados, e que têm a ver com os desperdícios. Alguns, dolosos. Entre estes, a utilização indevida de dinheiros públicos.
Vários são os caminhos possíveis para reduzir a despesa pública. Entre estes está a limitação da oferta ou a tentativa de diminuição da procura dos serviços, opção que pode acarretar efeitos perversos. Porque poderia arriscar algumas das nossas conquistas civilizacionais, como o declínio da mortalidade infantil ou o aumento da esperança de vida. E porque porventura deixaria por apurar a outra dimensão, a da fraude, não dispicienda e por definição de contornos difusos. Fiscalizar, controlar e punir – severa e exemplarmente – aqueles que se anicharam no sistema e beneficiam ilegitimamente do bem comum é, por isso, uma prioridade. Afinal grande parte do problema pode não residir no Estado Social – mas no uso e abuso que dele se faz.
PS: As vitórias sociais das mulheres portuguesas foram o tema do nosso anterior artigo. Durante esta semana, pela primeira vez na sua história, a Assembleia da República elegeu uma mulher para presidente. Trata-se do segundo mais importante cargo na hierarquia do Estado. Claro que as qualidades pessoais de Assunção Esteves relevaram na decisão do Parlamento. Este momento histórico não significa, por isso, uma vitória das mulheres sobre os homens mas apenas a vitória de uma pessoa que é mulher. O que seria inimaginável há umas décadas, como tentámos mostrar em
Mulheres fazem a diferença.