<#comment comment=”[if gte mso 9]> Normal 0 false false false MicrosoftInternetExplorer4 <#comment comment=”[if gte mso 9]> <#comment comment=” /* Style Definitions */ p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-parent:””; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:”Times New Roman”; mso-fareast-font-family:”Times New Roman”; mso-ansi-language:PT; mso-fareast-language:PT;} @page Section1 {size:595.3pt 841.9pt; margin:70.85pt 3.0cm 70.85pt 3.0cm; mso-header-margin:35.4pt; mso-footer-margin:35.4pt; mso-paper-source:0;} div.Section1 {page:Section1;} “> <#comment comment=”[if gte mso 10]> Não é uma pessoa, é um monumento: um metro e noventa e quatro de altura, cento e dez quilos de peso, mãos gigantescas, uma força desmesurada, calça quarenta e oito, ocupa uma mesa inteira de garrafa de cerveja na mão, enche o tasco com a voz e ninguém se atreve a interrompê-lo. Não precisa de zangar-se: resolve qualquer problema com uma frase definitiva que me deixa de boca aberta de admiração. Primeiro exemplo: a empregada do tasco não havia maneira de lhe atinar com a conta e ele estimulou-lhe as capacidades mentais com uma ordem definitiva:
– Ó flor pensa com a raiz.
Segundo exemplo: um fulano entrou no dito tasco com os óculos escuros subidos até ao cabelo e vai ele:
– Roubaste os óculos a um gajo mais alto do que tu?
Terceiro exemplo: impacientou-se não sei com quem e preveniu
– Olha que eu dou-te uma lambada que dás três voltas à cueca sem tocar no elástico.
Quarto exemplo: andavam esses sujeitos da Câmara, vestidos de verde, a multar com entusiasmo, uma das minhas filhas hesitava em arrumar o automóvel num lugar proibido e ele sossegou-a, diante dos sujeitos verdes amedrontados:
– Ponha-o aí à vontade, menina: por cima de mim só os aviões.
E podia multiplicar os exemplos até ao infinito. Ultimamente anda deprimido: a mulher deixou-o e pediu o divórcio por causa de uma discussão sem importância. Não entende que uma discussãozeca acabe com um casamento de dezanove anos. Ainda por cima um problema de caracacá: que culpa tem ele da fragilidade da esposa:
– Mal lhe rocei partiu logo os dois braços
e isto numa surpresa sincera, a espalmar-se de inocência contra o peito:
– Pela felicidade dos meus filhos que mal lhe rocei, senhor doutor.
É camionista
(se calhar, em vez de conduzir, leva o camião às costas)
bruto e sensível ao mesmo tempo, de lágrima tão fácil quanto o murro, pronto a enternecer-se e a zangar-se, imprevisível na violência e na compaixão, orgulhoso e humilde, tão solitário no fundo, de uma agudeza instintiva e certeira que uma matreirice sem maldade acompanha. Quando pega na cerveja a garrafa desaparece-lhe na palma e o balcão cheio de gargalos vazios. Nunca o vi bêbado mas se calhar tão pouco sóbrio, navega numa zona intermédia, de álcool à vista. Agora, sem mulher nem filha
– Tem treze anos, um metro e oitenta e dois e calça três números abaixo do meu
passeia melancolias nos intervalos das viagens, sempre de fato e gravata, penteado, perfeito. Mostra-me fotografias da filha gigantesca, retiradas com dificuldade da confusão da carteira. Digo-lhe que é bonita, corrige
– Um Ferrari
e dissolve-se, imóvel, numa saudade comprida. A filha não terá apreciado os braços partidos da mãe, vá-se lá saber porquê, e recusa vê-lo, de modo que lhe ronda a escola à hora da saída, escondido numa árvore do outro lado do passeio. Mal a filha apanha o autocarro, sem dar por ele, volta a pé para o tasco a lutar contra uma humidade ácida que, de repente, lhe incomoda os olhos. No tasco as garrafas de cerveja triplicam e não se torna especialmente aconselhável falar-lhe. Por volta da vigésima oitava pede a conta, a empregada não acerta e lá vem o
– Ó flor pensa com a raiz
mas sem alma, cansado. Levanta-se devagar, vai-se embora sem cumprimentar ninguém e apesar de por cima dele só os aviões ei-lo indefeso e minúsculo, um trapinho à deriva que qualquer sopro empurra. Uma ocasião anunciou-me
– A vida não é fácil, senhor doutor
deu-me uma palmada nas costas que ele julgava cúmplice e me desarrumou os órgãos todos e sumiu-se deixando-me de fígado no peito e coração no umbigo: quase dei três voltas à cueca sem tocar no elástico. Nas últimas semanas não o tenho visto. Contaram-me que foi com o camião para o estrangeiro, o Luxemburgo ou assim, e esses trabalhos demoram muito tempo. Fingi que acreditei. Fingi tanto que acreditei de facto embora sabendo, no interior da alma, que era mentira. Ontem tive no jornal a prova disso ou pode ser que o jornal se referisse a outra pessoa. Vinha lá escrito que um camionista deixou o volante à beira de uma linha férrea, marchou uma centena de metros ao longo das calhas e abraçou-se
(como quem abraça uma filha?)
ao primeiro comboio que apareceu. O retrato no jornal é o dele mas talvez eu esteja enganado. De certeza que estou enganado: parecemo-nos tanto uns com os outros, não é?