A ideia era entrevistar uma criança, de preferência do sexo feminino. Estava numa sala comunitária de uma aldeia no norte de Myanmar, num dos estados mais pobres do país, paredes-meias com o Bangladesh. Um grupo de mães solteiras e viúvas, líderes comunitários e religiosos, crianças e jovens. Parece coisa pouca mas, numa comunidade onde nem sempre as mulheres e as crianças são ouvidas, já não é nada mau colocar todas as vozes numa sala só.
Em discussão estavam os principais problemas que enfrentam as crianças desta comunidade de um tristemente famoso grupo étnico. Extrema pobreza, discriminação, conflito inter-religioso, aliados à frequência de desastres naturais, ajudam a explicar os números assustadores de tráfico e abuso sexual de crianças, violência corporal, ou casamento e trabalho infantis.
Procurava uma criança do sexo feminino, mas aquele sorriso honesto do fundo da sala disse-me tudo. Soube logo que ele era a personagem que ia abrir a minha história. Não era criança, nem era mulher. 18 anos de Ebrahim, um jovem forçado a ser homem cedo demais com a morte do pai. Apesar de ter terminado o secundário, Ebrahim não pôde seguir para a universidade. Está preso na sua aldeia. Não tem permissão para se deslocar para fora dos portões de segurança, para o outro lado, onde estão as universidades, as oportunidades de emprego. O Mundo lá fora. E Ebrahim, assim como cerca de um milhão de pessoas, fechadas cá dentro. Mas Ebrahim não se queixa. Sabe bem as razões que levam a sua comunidade, uma minoria maioritária no norte do tal estado, a não ter liberdade de movimentos, a não ter direito a qualquer nacionalidade. Presos e encurralados. Nem amados em Myanmar, nem no Bangladesh. Mas não se queixa.
Ebrahim é um professor voluntário numa escola primária. Bem esticadinhos, os 20 euros que recebe por mês vão dando para sustentar a mãe e os seis irmãos. Sendo o mais velho, é o natural chefe e sustento da família. As duas irmãs ainda andaram pela escola, mas não por muito tempo. Por influência religiosa e pelas circunstâncias limitadas do cerco e das poupanças, elas ficam por agora em casa, vão talvez casar-se cedo demais, sem mais perspectivas do que continuar o calvário – para utilizar termo de religião alheia – das gerações anteriores. Mas Ebrahim não se queixa. É de um optimismo que se lê nos olhos e no riso.
Hoje, nesta sala onde estão todas as vozes, está orgulhoso de ter sido um dos escolhidos para aprender como reduzir os riscos enfrentados pelas crianças da comunidade. E sabe que como professor tem um papel fundamental. Que pode marcar a diferença.
Timidamente, já começou a falar de direitos da criança na sala de aula. Para que pelo menos elas se possam proteger. Uma triste ironia dada a situação em que todos vivem. Para encorajá-las, todos os dias cria um ambiente para que se sintam felizes e não desistam da escola. Pelo menos ali estão protegidas.
Ebrahim não se atreve a sonhar com outros empregos mais ambiciosos, nem com a fuga para os países vizinhos para uma vida melhor e em liberdade, como milhares têm feito nos últimos anos. As suas ambições são comedidas e nada egoístas. Apenas deseja que todos os miúdos, e pouca importa se muçulmanos ou budistas, mesmo todos, façam aquilo que ele não conseguiu fazer até ao fim: permanecer na escola. Para isso tem um plano. Vai poupar, tentar ganhar mais um pouco, aprender mais sobre as lides do ensino, para construir uma escola com um programa de ensino de qualidade. Apesar de isto ser conversa de um futuro incerto, no presente Ebrahim já começou por identificar as 20 ou 30 crianças da sua aldeia que não podem ir à escola e está agora a discutir soluções com os chefes comunitários.
A história podia acabar aqui, com esta nota de esperança para o futuro de Ebrahim. Mas não acabou. Ou se calhar, foi mesmo o fim do Ebrahim. Ebrahim pode estar morto. Há mais de dois meses que ninguém pode entrar na tal zona a norte do tal estado, desde que um grupo alegadamente islâmico atacou postos fronteiriços, matando nove guardas. A partir daí recomeçou o pesadelo do grupo étnico de Ebrahim. Os militares tomaram conta de toda a zona e expulsaram jornalistas e organizações humanitárias. Os relatos foragidos que foram chegando, fragmentados e por confirmar, fazem temer o pior.
Mais de 25 mil pessoas, sobretudo mulheres e crianças, conseguiram fugir e entrar ilegalmente no Bangladesh, através de subornos e travessias arriscadas de rios e selvas. É de lá que chegam agora relatos que confirmam o que já se publicava nos jornais do mundo: aldeias inteiras do norte deste estado de Myanmar terão sido queimadas, mulheres violadas, homens mortos ou presos indiscriminadamente.
Do céu, os satélites tiraram fotos que confirmam que pelo menos 1500 casas foram queimadas. Certo também é que antes dos alegados ataques de 9 Outubro, mais de 3 mil crianças com desnutrição aguda grave recebiam tratamento. Com a interrupção de todas as actividades humanitárias, há dois meses e meio, todas estas crianças estão em sério risco, passo o eufemismo. Para não falar de tudo o resto (e de Ebrahim), que tarda em ser confirmado.
Deixar entrar imediatamente a ajuda humanitária a esta zona de Myanmar – país que tem sido aplaudido pelo mundo pela reforma e exemplo democráticos – será pedir muito?
E enquanto soluço estas meias palavras, choro de raiva e de culpa. Mas, finalmente, choro e não calo.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 110 dias
Nas notícias por aqui: Vários países e organizações internacionais continuam a apelar ao governo de Myanmar para que permita o acesso humanitário ao norte do estado de Rakhine, de onde continuam a chegar notícias de graves violações de direitos humanos. Uma comissão de investigação liderada pelo vice-presidente de Myanmar, nomeado pelo poder militar e também ele um antigo general, reafirma que o exército está a agir de acordo com a lei em resposta aos ataques de 9 de Outubro.
Um número surpreendente: Em 2016, o governo revelou pela primeira vez em 30 anos os dados relativos aos diferentes grupos religiosos do país: Mais de 45 milhões de pessoas (88% dos 51,4 milhões de habitantes de Myanmar) são budistas. Cristãos representam 6,3% da população (3,2 milhões) e muçulmanos 4,3% (2,2 milhões). No entanto, não foram contabilizados os cerca de um milhão de muçulmanos que vivem no estado de Rakhine, já que não são considerados nacionais de Myanmar… ou de qualquer outro país do mundo.
Sabia que por cá: Há um grupo radical budista que defende a expulsão dos muçulmanos de Myanmar, incitando por vezes à violência. O seu líder, um monge budista, terá afirmado à revista Time que gostaria de ser conhecido como o Bin Laden birmanês. A este grupo não é alheia a criação em 2015 das chamadas leis da protecção da raça e da religião que, entre outras coisas, pretendem controlar a natalidade, prevenir a poligamia e dificultar os casamentos inter-religiosos. Quatro leis concebidas e pensadas para (punir) a população muçulmana a viver no norte do país.