Fui diagnosticado com fibrose quística quando tinha um ano e meio. Esta doença é a expressão de um gene mutado que se manifesta em todo o organismo, especialmente no sistema respiratório, nos pulmões, e no digestivo. Por isso, desde criança até aos dias de hoje, mesmo após ter recebido um par de “pulmões novos”, há três anos, tomo dezenas de comprimidos, faço cinesioterapia respiratória e aerossolterapia, diariamente.
Durante toda a minha infância e adolescência segui religiosamente todas estas terapêuticas diárias, mas tive sempre tosse, expetoração, problemas no sistema digestivo e, em períodos de maior agravamento do meu estado de saúde, internamentos com idas ao hospital por infeções respiratórias.
Felizmente, tive também a sorte de os meus pais terem aprendido a administrar a antibioticoterapia endovenosa em casa. Graças a eles, podia fazer aí alguns dos internamentos, que tinham a duração de duas semanas, sem que durante esse tempo tivesse de viver no hospital.

Diria que posso dividir a doença em duas fases. A primeira corresponde à altura em que eu tinha uma consciência muito ligeira do problema e limitava-me a fazer o que era suposto, sem me questionar, e a aproveitar para viver a vida feliz e normalmente. A outra fase foi quando cresci e ganhei mais maturidade, e as responsabilidades da doença começaram a passar para mim.
Desde aí, estive sempre consciente dos problemas, cuidados e limites que a doença impunha, mas nunca aceitei viver limitado e viver menos do que os outros. Não queria que os meus problemas de saúde me limitassem de forma alguma.
Foi também a partir desse momento que passei a ter vergonha que os meus amigos soubessem que tinha fibrose quística e tentei ao máximo esconder o problema até que a doença o permitisse. Sempre fui um miúdo normal e bastante ativo, praticando vários desportos como surf, ténis, skate, snowboard, natação, bicicleta, entre outros.
De certa forma, procurei sempre explorar os meus limites de maneira a não me sentir menos capaz do que os outros ou até conseguir superar os limites de uma pessoa normal. Por um lado era benéfico, porque esta atitude ajudou-me a viver sem me limitar a nível psicológico e emocional, o que me trouxe motivação para lidar melhor com os desafios relacionados com a doença, mas, por outro lado, por vezes podia tornar-se prejudicial por sobrecarregar as minhas capacidades físicas e comprometer o meu estado de saúde.
“Estive no paraíso e no inferno”
A realidade da fibrose quística é que, faças tudo como deve ser ou não, as coisas vão sempre agravar-se e, infelizmente, o fim é sempre trágico e precoce. Mas os avanços da Ciência e as novas terapêuticas disponíveis fazem-me acreditar que, para as novas gerações, este final já será diferente e muito mais promissor.
No final da adolescência, com o agravamento progressivo da doença, os pulmões foram-se deteriorando em consequência das frequentes infeções pulmonares, sempre mais severas e difíceis de controlar. Este agravamento do estado dos pulmões fez com que começasse, aos 16 anos, a ter episódios de hemoptises, hemorragias internas nos pulmões.
Ao longo de 11 anos, com umas mais sérias do que outras, fui sobrevivendo com internamentos nos cuidados intensivos e algumas cirurgias que ajudavam a controlar temporariamente estas hemoptises. Há quatro anos, no seguimento de uma destas hemorragias mais sérias, os médicos perceberam que as coisas já não se conseguiam controlar por muito mais tempo e que a única solução era fazer um transplante pulmonar.
Chorei muito quando me disseram. O transplante é todo um conjunto de dualidades, porque, por um lado, fica-se devastado por se saber que se está tão mal ao ponto de ter de ser transplantado e, por outro, sente-se algum conforto em saber que há alguma esperança, que podemos mudar a nossa vida e continuar com ela.
Mas mesmo que corra bem, não vai ser fácil. É dos transplantes mais difíceis e complexos e comporta inúmeros riscos para toda a vida. Mistura-se medo e tristeza com alegria e alívio. É uma experiência demasiado forte para explicar por palavras.
A realidade é que a esperança média de vida na fibrose quística é de 40 anos e, ainda que eu nunca tenha querido pensar muito na reta final, sabia que, nesta altura, ela já estava próxima. Mas sempre quis acreditar que ia viver mais e pensava fazer um transplante mais perto dos 40. Foi um choque perceber que isso estava a acontecer com 27 anos.
O primeiro ano do transplante é especialmente difícil e não teria sido possível superá-lo sem o apoio incondicional da minha mulher, família, amigos e, obviamente, de todos os profissionais de saúde que me acompanharam e a quem estou eternamente grato. Broncoscopias, exames diários, reabilitação, meia centena de medicamentos, cuidados extremos na alimentação e de higiene, efeitos colaterais de medicamentos e a lista continua…
A acrescentar, tive algumas complicações pós-transplante, duas pequenas rejeições normais da adaptação aos pulmões novos e uma estenose brônquica que ainda hoje me impede de respirar normalmente. Mesmo assim, comparando com o estado em que estava antes do transplante, já não me cansava como antigamente a fazer as tarefas normais do dia a dia, sentia muito mais energia e motivação para recuperar a minha vida.
Dois meses depois da operação já estava com uma raquete de ténis na mão e, um ano mais tarde, entrava no mar, para surfar com o meu pai, pela primeira vez em três anos. Foi incrível. O transplante deu-me a oportunidade de poder fazer planos futuros e passar a viver a vida ao contrário de apenas sobreviver. Hoje em dia faço uma vida quase normal. Continuo a usar máscara em locais com muita gente ou em sítios fechados, mas voltei ao surf, a projetos pessoais na área das artes e ao ténis. Estou a tirar um curso de treinador de ténis, uma coisa que eu nunca imaginaria fazer e a planear uma exposição de arte com esculturas minhas. Está a ser incrível. Estou muito grato!
Costumo dizer que, na minha vida, já estive no paraíso e no inferno muitas vezes. Já passei por momentos e experiências superfelizes, que considero perfeitos, como também já passei por outros horríveis e muito, muito, difíceis. O meu foco é aproveitar os momentos em que estou no paraíso ao máximo e, quando estou no inferno, sentir um pouco do paraíso nele. Aprender a aproveitar a vida, esteja onde estiver.
Para saber mais: O que é a fibrose quística
A esperança média de vida dos doentes com fibrose quística ronda os 40 anos. Esta doença genética hereditária é provocada por mutações num gene que vai causar um mau funcionamento em vários órgãos, mas são sobretudo os problemas que ocorrem nos pulmões os responsáveis pela grande morbilidade da doença. Estes doentes têm secreções brônquicas muito espessas e difíceis de eliminar, por isso, tossem muito e desenvolvem infeções respiratórias que podem ser fatais. Além disso, o pâncreas não segrega as enzimas digestivas em quantidade suficiente para a digestão dos alimentos, o que faz com tenham muita dificuldade em ganhar peso e estatura.