A vida interroga-se perante a ideia da morte; a morte inevitável, cada vez mais próxima. O que é que isso suscita quando essa interrogação é elevada ao grau extremo, à obsessão? Ivan Ilitch, um burocrata com uma vida desinteressante, indaga acerca desse estado permanente: “Eu, eu deixarei de existir, mas que haverá então? Nada. Mas onde estarei, quando deixar de existir? É na verdade a morte?”.
Estamos em plena novela A Morte de Ivan Ilitch que, como o título indica, conta a fase final da vida de um homem de 45 anos. “A morte. Sim, é a morte. E todos eles, que não sabem, que não querem saber. Divertem-se (ouvia através da porta o falatório, cantorias). Não lhes importa, mas hão-de morrer também. Imbecis! Vou primeiro, mas em seguida será a vez deles. Lá chegarão. Mas agora divertem-se, os estúpidos animais!”, Ivan sente-se doente, consciente do fim, e sente “raiva” – é a palavra usada – por quem levianamente ignora essa inevitabilidade e segue a vida sem esse horizonte derradeiro. Tudo começou assim: “Bati contra o fecho da janela. Mas não havia nada mudado: fiquei na mesma. Depois começou a doer-me um pouco, em seguida mais. Em seguida foram as dores, o mau humor, a angústia, depois novamente as dores. E a pouco e pouco aproximo-me do abismo. Diminuem-me as forças. Mais perto, ainda mais perto. Estou vazio; já não tenho luz nos olhos. É a morte, e eu a pensar no apêndice. A pensar em curá-lo. E é a morte. Será ela, na verdade?”.
Um acidente banal ganhou, assim, dimensão trágica e nesse processo, que é o do confronto de Ivan com a sua finitude, Tolstoi põe cada uma das personagens do livro em frente desse espelho incómodo e o medo de Ivan Ilitch torna-se um medo universal a partir do momento em que esse constrangimento passa também para o leitor. Com Ivan, a sua família, os seus amigos, os colegas de trabalho, somos também nós na vida, e não na morte, ao partilhar as inquietações do juiz, “conselheiro do Tribunal da Relação”, logo no momento em que, no início da narrativa, sabemos com eles que ele morreu no dia 4 de fevereiro de 1882.
Posto de outro modo, em A Morte de Ivan Ilitch, tudo começa na morte para se saber da vida. Leo Tolstoi escreveu este livro em 1886, quase dez anos depois de Anna Karenina e 17 após Guerra e Paz. Tinha 58 anos. “A história de Ivan Ilitch era das mais simples, das mais vulgares e das mais atrozes.” Esta simples frase contém a contradição que fez parte da existência de Tolstoi e contaminou toda a sua obra. As suas personagens partilham com ele a ambiguidade perante o mundo, questão complexa cuja formulação simples ele persegue obsessivamente através de uma escrita despojada, no osso, não dando nunca mais do que o crucial. Fica o essencial para se saber dos estados de alma, dos ambientes, da tipificação das personagens.
E uma simples hesitação pode dizer tudo acerca de alguém. Como saber de Piotr Ivanovitch, um dos amigos mais próximos de Ivan, no momento em que entrou no quarto mortuário. “Piotr Ivanovitch entrou, sem saber muito bem, como sempre acontece em tais conjunturas, como havia de proceder. Só uma coisa sabia: era que em tais circunstâncias um sinal da cruz nunca é de mais. Mas não estava bem certo se além disso não seria também preciso fazer alguma vénia diante do corpo; decidiu-se pois por um compromisso: depois de entrar, benzeu-se e inclinou levemente a cabeça. Ao mesmo tempo foi examinando o quarto, tanto quanto lho permitiam os movimentos que fazia com a cabeça e os braços.”
O incómodo toma conta de tudo. Na morte e na doença. Menos do criado Guerassime, o homem que parece congregar todas as qualidades que Tolstoi foi apregoando como as grandes virtudes humanas à medida que o seu próprio fim também se aproximava. Aos 58 anos, estava longe de ser um jovem, via na pobreza e na humildade do homem que se transformou em enfermeiro do seu protagonista um modelo de virtudes, as da vida onde Tolstoi iria permanecer por mais de duas décadas, antes de renegar tudo o que era material para se aventurar numa deambulação espiritual. Seria breve, mas quando tomou a decisão, aos 82 anos, não tinha como o saber. Talvez no dia em que saiu de casa, deixando tudo, tivesse pensado justamente em Guerassime, a sua criação modular. “Guerassime era o único que não mentia: tudo mostrava que só ele compreendia o que se passava e que não julgava necessário escondê-lo; mas tinha simplesmente piedade do seu patrão, fraco e descarnado. Disse-lhe mesmo uma vez, com toda a franqueza, quando Ivan Ilitch insistiu para ele se ir embora: ‘Todos nós havemos de morrer. Porque não se há-de fazer algum esforço?’, exprimindo assim que aquele trabalho não lhe era penoso precisamente por o fazer por um moribundo e que, quando chegasse a sua vez, esperava que procedessem na mesma para com ele.”
É Ivan Ilitch quem olha e escuta Guerassime. Aprendeu a respeitá-lo, a ver nele a ausência de medo que não era comum nem a si próprio nem aos que o rodeavam. E esse confronto, entre o que pareciam ser os defeitos mais humanos, medo ou a mentira e as suas consequências, com a aceitação da mortalidade transforma-se no verdadeiro centro desta preciosidade literária onde está tudo o que compõe a vida com um acrescento: a genial singularidade narrativa de Tolstoi.