É um dos mais citados inícios da história da literatura. “Um dia de manhã, ao acordar dos seus sonhos inquietos, Gregor Samsa deu por si em cima da cama, transformado num inseto monstruoso.” A metamorfose do caixeiro-viajante Samsa, o filho e irmão dedicado unicamente ao trabalho para saldar as dívidas da família, tornou-se a metáfora do rebaixamento humano. Ao acordar transformado em inseto, a preocupação do caixeiro-viajante era a de não estar a cumprir o horário e com isso poder, no limite, perder o emprego.
Gregor Samsa é o anti-herói por excelência de Franz Kafka (1883-1924), um homem que vê o mundo passar ou decorrer à sua volta enquanto se limita a cumprir a sua função. “Era uma criatura do chefe, sem espinha dorsal nem massa cinzenta”, como via na sua biografia muito resumida.
Ao transformar-se em inseto, prossegue a mesma existência passiva a nível pessoal. Assiste ao comportamento dos outros perante a sua presença transformada. “As relações humanas sempre a mudar, nunca estáveis, sem nunca poderem chegar a ser afetuosas”, observava enquanto andava em viagem. Agora, confinado ao seu exílio, via o afeto doméstico alterar-se para sentimentos contraditórios, entre os quais a repulsa, a piedade, o desprezo, o ódio. E ele aparentemente inalterável na sua carapaça.
Publicado pela primeira vez no final de 1915, A Metamorfose foi terminado em 1912. Numa das mais de 500 cartas enviadas a Felice Bauer, o grande amor da curta vida de Kafka, ele contava-lhe que estava a trabalhar numa história que lhe surgira enquanto estava deitado, na cama. Provavelmente numa posição idêntica à de Samsa no momento da sua mutação. Semanas depois, apesar das confessadas dificuldades que estava a ter para concluir o livro, dava-o por terminado. Só seria publicado três anos depois.
Foi Kafka a dá-lo a conhecer publicamente. Em novembro de 1912, leu aos seus amigos a primeira parte da história do homem transformado no inseto gigante, um inseto nunca especificado ao longo do livro, como se o que o leitor soubesse fosse apenas o modo como Samsa se via. Um ser grotesco, repugnante à sua própria vista. “Sentia uma leve comichão na parte de cima da barriga, foi subindo devagar até chegar mais perto do pé da cama, para poder erguer mais facilmente a cabeça; encontrou o lugar da comichão, coberto de muitos pontinhos brancos que não sabia explicar; quis apalpá-lo com uma das pernas, mas logo a retirou, porque o simples toque lhe provocava calafrios.” O ponto de vista da história é sempre o de Gregor Samsa e é essa perspetiva que serve para descrever ambientes e nomear personagens: o chefe, o pai, a mãe, a irmã. Só esta terá um nome, Greta.
Depois dessa leitura, teve várias propostas de edição; uma, veio de Robert Musil, o escritor alemão autor de O Homem Sem Qualidades, que estava ligado ao então prestigiado jornal Die neue Rundschau. No entanto, o início da I Guerra Mundial atrasou a publicação. Sairia na editora Kurt Wolff Verlag com uma capa onde, a pedido de Kafka, não aparecia o desenho do inseto. Ele gostaria que o enigma se mantivesse, mas em conversas privadas referia-se-lhe como o besouro.
Ao longo dos mais de 100 anos de existência, A Metamorfose tem sido uma das obras mais discutidas, adaptadas, inspiradoras e influentes. O facto de ser mais uma novela do que um romance parece confirmar aquele que é um dos maiores atributos de Kafka, a história breve, a ideia breve, a frase breve, ainda que tenha escrito romances maiores que fazem parte do chamado – e sempre polémico – cânone ocidental, como O Processo (1925) ou O Castelo (1926). Mas o fulgor das páginas iniciais de A Metamorfose, aquelas que leu em voz alta aos amigos, é exemplar. O homem que se debate fisicamente com a sua nova condição de inseto ao levantar-se da cama e ao abrir a porta do quarto e que ao longo desse processo vai desfiando uma série de pensamentos sobre a vida e o seu quotidiano.
Samsa focado na rotina quando Kafka parecia temê-la, evitar o quotidiano a todo o custo com receio de que isso o roubasse à literatura. Noutra das cartas a Felice Bauer, diria, para justificar a sua relutância em casar, apesar de se dizer apaixonado: “Penso com frequência que a melhor forma de vida para mim seria trancar-me no mais fundo de uma vasta cova. Trar-me-iam comida e deixavam-na sempre longe de onde eu estivesse instalado, seria o meu único passeio. Ato seguido, regressaria à minha mesa, comeria lenta e conscientemente, e em seguida pôr-me-ia a escrever”.
É o desejo do homem refém da sua condição, como Samsa acabou por se tornar sem que isso fosse um desejo, mas antes o sinal da sua humilhação, da recusa de viver a sua vida, mas a vida e o sonho dos outros. O homem burocrata que no limite deixa de ser capaz de comunicar. As suas palavras não saem percetíveis, é o som do inseto que os humanos não entendem, tendo ele mesmo desistido de se fazer entender, fechando-se mais e mais, o humano no corpo estranho, no grotesco. Mas também mais livre, pode caminhar ligeiro nas suas “patinhas”, esconder-se, trepar paredes, não ser o caixeiro-viajante que alimenta a família. Está livremente na sua solidão.
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