JL: Cabo Verde é um país de emigrantes. Mas o seu disco fala sobre migrantes num sentido mais lato. O que lhe interessou no tema?
Mário Lúcio: O disco é dedicado à migração. No fundo, é dedicado à diversidade. De disco para disco, tenho sempre ido do micro ao macro, tentando expandir o meu universo até que agora cheguei à fé humana. Uma migração que começou há 65 mil anos com aquela viagem que partiu da África Austral, caminhando em busca de condições melhores, até chegar à Europa do Norte ou à Ásia. É essa migração que me fascina. Porque daí nasceram homens de peles mais claras, cabelos mais ruivos, olhos verdes, olhos rasgados, tudo ligado a uma adaptação ao clima. Cada fixação foi criando a sua relação a nível cultural. Como é que a migração sempre existiu e como é que nós hoje com um egoísmo exacerbado transformamos uma epopeia, uma ação que sempre foi bela, numa tragédia. Conseguimos transformar a beleza numa desgraça.
Musicalmente este álbum também é muito diferente. Como foi trabalhar com estes jovens músicos portugueses?
Foi casual. Eles tinham gravado uma música minha e quiseram conhecer-me. Mostrei-lhe mais 20 canções inéditas. Há aqui também um encontro de culturas. É a primeira vez que um produtor de outro país, de outro continente faz todo o arranjo e produção de um disco meu. Nos nove discos anteriores sempre tomei conta dessa parte. Desta vez foi bonito, como se a minha alma tivesse a ser lida por outros. Isso resulta numa sonoridade antiga e moderna ao mesmo tempo. Com a presença de adubes, mas também instrumentos que nunca foram utilizados na música cabo-verdiana. Gosto desses experimentalismos. E acaba por ser um retrato do migrante que vai viajando e absorvendo a experiência de outras culturas.
É algo que te sido feito ao longo dos seus discos. Nunca olhou para a tradição como algo estático…
Dentro da música de Cabo Verde tenho feito o esforço de não me cingir às tradições, desde dos Simentera. O meu primeiro disco, Mar e Luz foi de voz e violão e isso foi inédito da música de Cabo Verde. Agora já há dezenas de trovadores jovens a fazer isso.
Como concilia a música com a literatura?
Casualmente este é o meu décimo disco e acabei de publicar o meu décimo livro. Nunca pensei em como conciliar essas coisas. Tudo reflete a minha relação com tudo o que me rodeia, desde o chão até ao infinito e o desconhecido. Através de mim baixam as coisas. Costumo dizer que não escrevo nem componho, faço downloads cósmicos. As coisas às vezes descem em forma de música, outras através de um texto, pensamentos, um quadro, uma pintura ou uma escultura.
E o que vem a seguir? Um livro ou um disco? O que vai desempatar?
Nunca sei o que vai sair primeiro. Tenho cinco livros terminados e mais de 210 canções inéditas.