Ao longo deste Ano de Portugal no Brasil e do Brasil em Portugal, não faltarão oportunidades para apreciar, em solo nacional, o teatro que se faz do outro lado do Atlântico. Mas dificilmente haverá uma companhia que se encaixe tão bem no ‘espírito’ de intercâmbio como os Foguetes Maravilha, que acabam de chegar a Portugal para apresentar três peças e estrear um novo espectáculo, em colaboração com o coletivo Mundo Perfeito, de Tiago Rodrigues.
É que não é possível contar a sua história sem tropeçar no nome deste ator e encenador português. Em 2008, Alex Cassal e Felipe Rocha estrearam a sua primeira colaboração, o monólogo Ele Precisa Começar (escrito e interpretado por Felipe Rocha e dirigido pelos dois), mas, apesar do ‘sucesso’ da peça, que colheu elogios da crítica e viajou de norte a sul do Brasil, não ficou certo que iam continuar a trabalhar juntos. Foi só, em 2009, quando participaram no projeto Estúdios, no Teatro Maria Matos (TMM), em Lisboa, a convite de Tiago Rodrigues, que decidiram que a dupla era para valer. “Cada artista tinha que apresentar um solo que fosse uma espécie de ‘cartão-de-visita’ da sua forma de trabalhar. Eu e o Felipe trabalhámos individualmente e, quando estreámos as nossas peças, percebemos que partilhavam não só o tema (as relações familiares), como também a linguagem teatral”, conta Alex.
Essa experiência seria o embrião do seu segundo espectáculo, 2Histórias (a partir de textos do escritor brasileiro Sérgio Sant’anna e de Alex Cassal, que também assina a encenação, com Clara Kutner). E, em 2011, estreiam Ninguém Falou que Seria Fácil (escrita por Felipe Rocha, dirigida pelos dois, e já com Renato Linhares e Stella Rabello no elenco do coletivo), que lhes valeu os prémios Shell, APTR e Questão de Crítica e, ainda, uma nomeação para o Prémio Questão de Crítica nas categorias de direção, espectáculo e elenco. Com ela, consolidam uma linguagem própria, que passa pelo diálogo com o público e a revelação dos mecanismos cénicos, e que usa o nonsense para pensar “o nosso lugar no mundo”.
Três peças que prometem não deixar o público português indiferente: Ninguém Falou que Seria Fácil, no TMM, de 20 a 22 de setembro, e a 28, no Festival Materiais Diversos, em Alcanena; e 2Histórias e Ele Precisa Começar, no Espaço Alkantara, em Santos, a 25 e 26. De 2 a 17 de novembro, os Foguetes Maravilha voltam ao palco do TMM com Mundo Maravilha, o espectáculo que vão criar, ao longo destes meses, com o coletivo Mundo Perfeito, inspirado nas “aventuras épicas que marcam o nosso passado partilhado”, como a chegada dos portugueses ao Brasil narrada por Pêro Vaz de Caminha.
Jornal de Letras: A desconstrução dos códigos da linguagem teatral parece ser o foco do vosso trabalho.
Alex Cassal: É. Desde logo, a desconstrução da ideia de personagem. Na peça Ninguém Falou que Seria Fácil, por exemplo, a personagem Marina, uma menina de quatro anos, é representada por um ator de 30. Em cena, todos aceitam que aquela personagem é uma menina e um homem alto de barba. No momento em que combinamos “Agora somos todos crianças” ou “Agora estamos vivendo noutro lugar”, isso é aceite sem negar a realidade presente. Outro aspeto é o diálogo com o espectador: existe uma problematização da nossa relação com o público. Não nos interessa um teatro em que os espectadores estão no escuro, silenciosos, e são ignorados pelo que estamos a construir. Um dos eixos da peça Ele Precisa Começar é, precisamente, a participação de um espectador, proposta durante a apresentação. Em Ninguém Falou que Seria Fácil não há cenas tão interativas, mas por considerarmos que a temática das relações familiares diz respeito a todos, as reações do público são incluídas (um olhar, uma tosse, um gesto, etc.).
Há também um desmanchar da narrativa…
Sim. Enquanto dramaturgos, interessa-nos a não linearidade da história, nem cronológica, nem de personagens. Mais do que um ‘manifesto’, é uma maneira de trabalhar. Mesmo partindo de textos escritos, a base do nosso trabalho é a improvisação e a experiência, e esse testar as várias possibilidades de fazer uma mesma cena acaba por resultar num jogo caleidoscópico, onde as conexões são mais soltas.
São peças nonsense?
De certa forma, sim. O nonsense atrai-nos. Aliás, duas das nossas grandes referências são Os Trapalhões [grupo humorístico brasileiro que obteve sucesso na televisão e no cinema entre meados da década de 1960 e o ano de 1990] e os Monty Python. Servimo-nos dessa possibilidade de o mundo ser um lugar louco e surreal para pensar os assuntos porque, na verdade, nem os papéis são tão estabelecidos, nem as regras tão sólidas quanto parece. Estamos entre os 30 e os 40 anos, pertencemos a uma geração em que os papéis sociais e familiares não são tão estabelecidos como antes. Como é que um pai deve ser? Como é que um casamento dá certo? Hoje, as condições de felicidade são mais ‘líquidas’, então o nonsense é uma forma de refletirmos sobre que lugar é esse; que papel é esse que assumimos ser.
De que forma é que essas questões são abordadas nestas peças?
Em Ninguém Falou que Seria Fácil, pensámos o palco como uma espécie de parque infantil, onde as brincadeiras e as disputas de poder se vão sucedendo e misturando. Os jogos infantis são muito teatrais: não é claro o que é sério e a brincar, ou até que ponto não estão as crianças discutindo, através de uma encenação, questões do seu relacionamento como o papel de cada um dentro do grupo. Nesta peça, a relação entre as personagens dá-se como um jogo infantil, em que as regras e os papéis de cada um mudam constantemente. Através disso, falamos da família contemporânea, onde as funções têm que ser negociadas. Ou seja: usamos o teatro para falar das relações afetivas do nosso tempo e as relações afetivas do nosso tempo para explorar o campo teatral. Na peça Ele Precisa Começar, o jogo em causa é outro: explorar a relação de poder e confiança entre o dramaturgo, o ator e o espectador. Foi o primeiro texto que o Felipe [Rocha] escreveu para teatro, então há nele uma grande vontade de dialogar com o desconhecido, de se questionar sobre qual o papel do ator e do espectador nessa encenação. Tanto que um dos pilares da história é a participação de um espectador. Não sei como vai ser no dia em que ninguém se oferecer [risos].
Recorda-se de alguma participação especialmente marcante?
Houve muitas memoráveis. Teve uma, numa cidade no interior do Nordeste, em que um rapaz cego se ofereceu. A primeira coisa que Felipe [Rocha] fez foi andar com ele pelo palco, para que ganhasse a perceção do espaço. Essa apresentação foi muito emocionante porque o espectáculo fala de começar alguma coisa, desse pular no abismo, e eu fiquei a pensar na coragem desse rapaz que não via o que estava a acontecer, mas quis colocar-se naquele lugar. Depois, a certa altura da peça, o Felipe diz “Estamos sendo perseguidos por um gangue de mafiosos. Você segura o volante do carro conversível e dirige a alta velocidade”, ao que o rapaz respondeu “O quê!? Você quer que eu dirija? Eu sou cego!”. O Felipe reagiu naturalmente: “Pode dirigir, pode dirigir”, e ele entrou no jogo. Nesse jogo de se permitir ser coisas para além do que, de facto, se é.
Com apenas quatro anos de vida, os Foguetes Maravilha são apontados como um dos grandes nomes da nova dramaturgia brasileira. Como olham para esse ‘sucesso’?
O sucesso é sempre muito relativo. É verdade que tivemos uma resposta positiva logo no nosso espectáculo de estreia (Ele Precisa Começar), mas também passámos por teatros vazios e recebemos críticas negativas. O Ninguém Falou que Seria Fácil tem sido muito bem acolhido pelo público e pela crítica. Agora, não é bem-sucedido se compararmos com comédias feitas por atores de televisão ou com as versões dos grandes musicais da Broadway, que ficam seis anos em cartaz, em teatros de 1500 lugares. Considerando isso, os Foguetes Maravilha têm vindo a acompanhar a curva ascendente de uma nova dramaturgia brasileira, representada por uma geração entre os 30 e os 40 anos que faz teatro de autor. São autores, atores e encenadores que estão a conseguir manter o seu grupo, uma agenda com apresentações de novos trabalhos, e que conquistaram o direito ao subsídio. Já não somos só ‘novos talentos’, o nosso nome é reconhecido quando se trata de distribuir apoios. Sou suspeito para o dizer, mas acho que estamos a arejar o meio teatral carioca.