Em 11 temas, Pierre Aderne apresenta um mosaico de sonoridades que vai desde o samba, a bossa nova ou o chorinho, ao fado, passando pela morna de Cabo Verde. Satoshi Takeishi, percussionista japonês de jazz, e Ricardo Cruz, produtor português de fado, são alguns dos muitos músicos que colaboram no disco, que conta ainda com as vozes de Madeleine Peyroux, Cuca Roseta e Alexia Bomtempo.
JL: Como definiria este disco?
Pierre Aderne: Este álbum vem do mar aberto para terra, para o interior. Apesar de se chamar Água Doce, ainda tem muito de mar: é noturno, intimista, frágil. É o disco que mais me expõe. O processo de criação foi muito solitário e, mesmo quando há colaborações de outros artistas, preservo o critério da intimidade. Como se estivesse a receber amigos em casa, mas um em cada dia. Além disso, foi a primeira vez que gravei voz e violão juntos, como se fossem um instrumento só, assim, parece que é o primeiro olhar sobre o momento da sua composição, em cada um dos temas.
A canção ‘Só pra ver ela passar’ lembrou-me a ‘Garota de Ipanema’, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, que são, aliás, referidos na letra. É uma homenagem?
Exatamente, e tem uma história. Eu vivo em Ipanema, na rua onde o Tom morava, e o meu amigo Wagner Tiso, que compôs esta música, vive lá perto, então, passamos muitas tardes num boteco na avenida Vinicius de Moraes, antiga Montenegro, onde ele e o Tom se encontravam. Foi ali que viram a Helô Pinheiro passar e fizeram ‘Garota de Ipanema’. Ora, num desses dias, de tanto vermos meninas a passar, começámos a pensar como seria a nova garota de Ipanema, 50 anos depois, e acabámos por fazer a ‘Só pra ver ela passar’. Entretanto, convidei a Madeleine Peyroux para cantar comigo, não só por gostar muito do seu trabalho, mas também porque, apesar da música brasileira ter chegado aos Estados Unidos, as pessoas têm pouca noção do significado da poesia da música brasileira. Eu sabia que a Madeleine era uma excelente letrista, e, realmente, captou muito bem aquela malemolência e adaptou-a para a parte em inglês.
Mas nem só de música popular brasileira se faz este álbum. Também há fado…
As minhas maiores influências são Tom, Vinicius, João Gilberto, Elis, Caetano, Gal, Gil, Bethânia, e também a sonoridade do nordeste brasileiro, que se sente, por exemplo, no tema ‘Douro’. Mas também tenho uma forte influência de Portugal, e que não tem só a ver com o facto de o meu pai ser português. É uma relação com Fernando Pessoa, o mar, o fado… Então, há uns meses, o Ivan Dias, produtor do filme Fados, falou-me da Cuca Roseta, e quando a ouvi cantar, uma vez, através do skype, fiquei encantado. Assim que escrevi o ‘Fado dos barcos’, pensei logo em convidá-la. Desde o meu primeiro trabalho que há essa presença de Portugal: escrevi a ‘Astrolábio’ num café em Lisboa; no segundo, há músicas que compus cá; a ‘Doces Cariocas’ tem uma forte influência de José Régio, mas este foi o disco em que Portugal ficou mais pertinho de mim.
Encontra semelhanças entre a bossa nova e o fado?
Se fizesse uma leitura entre o fado e o tango ou o flamenco, diria que o fado é amor com sexo, e o tango ou o flamenco sexo sem amor. O fado é profundo, não me traz só melancolia: traz-me melancolia dentro de um espírito de amor e paixão. E isso remete-me, por exemplo, para a dramaticidade de Vinicius, aquela coisa do ‘sem isso não vivo’. A bossa, apesar de toda aquela malemolência e swing, não é tão sensual como o fado.