A recente publicação de Mulher Sapiens, de Cláudia Lucas Chéu (CLC), constitui o fim do longo processo do feminismo na literatura portuguesa. Iniciado, porventura, com a publicação nos Açores (S. Jorge) da obra de Marianna Belmira de Andrade, A Sibylla. Versos Philosóphicos, em 1844, finda neste ano de 2021 com a publicação de Mulher Sapiens igualmente nos Açores (Pico). Pelo caminho, carreia cerca de meia centena de autoras, umas militantes do feminismo, outras simplesmente denunciadores da opressão a que foram sujeitas as mulheres, cujos nomes seria fastidioso aqui elencar (reenviamos para Isabel Allegro Magalhães, O tempo das mulheres, 1987, e Fabio Mario da Silva, A autoria feminina na literatura portuguesa, 2014). Destacamos, do primeiro grupo, Ana de Castro Osório, escritora, editora e militante do feminismo; do segundo, Florbela Espanca, cujos versos, de Charneca em Flor, publicados após a sua morte em 1930, escandalizaram o regime do Estado Novo.
Na última etapa deste longo processo, destacaram-se, no primeiro grupo, em verso e em prosa, já em regime democrático, Maria Teresa Horta, e, no segundo grupo, no campo do romance e do conto, Teolinda Gersão. O ano de 1972 marca o elemento de rutura neste longo processo com a publicação do livro Novas Cartas Portuguesas, de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa: denúncia da condição feminina em Portugal na década de 70, que se mantinha em estado de longa humilhação histórica, mas também o anúncio da libertação cultural da mulher portuguesa, o que iria suceder nas décadas seguintes.
Se compararmos Ema (1984) ou A Paixão segundo Constância H. (1994), ou mesmo As Meninas (2016), de Maria Teresa Horta, autora, aliás, citada em A Mulher Sapiens (p. 207) ou O Silêncio (1981), Paisagem com Mulher e Mar ao Fundo (1982) ou O Cavalo de Sol (1989), de Teolinda Gersão, com os contos-crónicas de Mulher Sapiens, constatamos de imediato uma fortíssima mudança operativa na linguagem do narrador: da denúncia e protesto pela condição social e cultural, de natureza histórica, de algumas das personagens femininas nos textos das duas primeiras escritoras transita-se em CLC para um narrador que, independentemente do género, ostenta o orgulho de saber (e provar) que a mulher já não se encontra legal, social e culturalmente oprimida.
Aliás, o título do livro é elucidativo deste estado de espírito: não só Homo Sapiens, mas também e sobretudo Mulher Sapiens. As consequências textuais são imensas. Desde logo, a perda do lirismo quase puro de M T. Horta e da sensibilidade feminina (sobretudo no tratamento do tema “Casa”) em T. Gersão, substituídas por uma linguagem descritiva quase de natureza jornalística (os contos destinavam-se originariamente a serem publicados no jornal Público). Depois, e em consequência, uma linguagem com uma forte componente realista, uma linguagem comum (“A fraude do primeiro encontro”, p. 17), por vezes coloquial, sem preconceitos, na qual o corpo, o sexo e o desejo femininos são tratados abertamente.
Por exemplo, fala-se sem “pudor” na menstruação, tema até agora tratado apenas com perífrases; na negritude como dupla humilhação, mulher e negra pele (“Sou negra desde a escola primária, p. 123); na utilização do impropério o final com que fecha o conto “Como ser uma grande senhora”: “fodei-vos” (p.. 39); na indiferença ao género na educação: “A história é do homem e da mulher” e a frase emblemática “fui educada como criança e não como rapariga” (p. 21); na questão do acaso na vida social e amorosa (“No amor até o lixo reluz”, p. 211, e “Quem sempre usou sapatos, não vai longe descalço”, p. 117).
Porém, esta carta de alforria literária da mulher não deixa de ser acompanhada de algum ceticismo e, até, de alguma desilusão; o conto que dá título ao livro não podia ser mais explícito – livre, independente, mas carregada de responsabilidades que lhe não dão prazer. A mulher sábia só sabe que tem de aguentar” (p. 12); o próprio facto da gravidez parece não dar especial alegria ou realização plena: “A verdade é que só percebi que era verdadeiramente um animal quando engravidei e, mais tarde, quando amamentei pela primeira vez” (p. 47), mas posteriormente o narrador faz um belo elogio à filha (“A minha filha”, p. 23).
O ceticismo e a desilusão exprimem-se igualmente num conjunto de contos que tanto se referem à vida profissional (“Fumar no duche”, p. 61) como à velhice (“O branquear da púbis”, p. 83; “Talvez te falhe a ternura”, p. 129). A desilusão sintetiza-se na frase assassina por que se inicia este último conto: “A partir dos 40 tens a certeza de que vais falhar. Ou melhor, já falhaste”. Se tivéssemos de escolher um conto sintetizador da totalidade do espírito feminino presente em A Mulher Sapiens elegeríamos “Uma boca que nunca dá à luz” (p. 133): a mulher é hoje livre, mas não feliz, mas certamente mais feliz do que no passado, compensando alguma frustração real pela irrealidade do sonho por que termina o conto.
Na entrevista que Luís Ricardo Duarte fez a CLC, no JL de 19 de maio de 2021, apôs um título que diz tudo de A Mulher Sapiens: “Contos sobre mulheres e sem tabu”. Não se podia ser mais sintético e mais correto. No texto, escreve, “a sua prosa, tantas vezes torrencial, sempre na fronteira entre a realidade e a ficção, o biográfico e o imaginado, apresenta-se sem tabus”. Foi o que tentámos mostrar.
Poeta, romancista, dramaturga (tanto ao nível da escrita quanto da encenação), contista, CLC é, entre os novos escritores, o mais polivalente, fazendo par com Gonçalo M. Tavares, já que, tanto quanto sabemos, Patrícia Portela nunca publicou poesia.