Num livro que se organiza em função de uma ideia simbólica – os dias são, em Movimento, consagrados a astros, a deuses (“dia de Saturno”, “dia do Sol”, “dia da Lua”, “dia de Marte”, “dia de Mercúrio”, dia de Júpiter”, “dia de Vénus”, eis os títulos de cada uma das secções) -, e com uma rigorosa estruturação matemática (seis poemas para cada uma das sete partes constitutivas do volume, perfazendo 42 poemas), o menos que se pode dizer é ser este um dos livros mais pensados de João Luís Barreto Guimarães (JLBG). Não que os anteriores o não fossem. A sua arte é, na contemporaneidade, das que mais longe leva a lição pessoana da poesia como intelectualização de uma emoção, sem esquecer a romântica conceção da poesia e daquele que a faz – refiro-me a Keats – para quem o poeta era o ser “menos poético que existe”, dado que não teria qualquer identidade, estando, por isso, na eminência de se tornar sempre outra coisa.
Barreto Guimarães continua, de certo modo, a interrogar, de livro para livro, sob o tópico, ou tema, da viagem, de nobre linhagem, o sentido que a poesia pode ter para quem sabe que a poesia é, em si mesma, a viagem absoluta. A sua poética coloca-nos permanentemente em face de um problema: como resgatar, para um tempo sem deuses e sem astros, para uma época de desastres, um qualquer absoluto poético? Longe dos gregos, para quem a natureza era um interfeixe de relações e forças dinâmicas, imerso nos lugares infectos de uma idade ultra-tecnológica, que pode a simples observação através da poesia, reter?
“Ruínas / assim dispostas levam séculos a / conseguir (incêndios / e terramotos mostraram idêntico afã e / rigor na / construção) o lugar de / cada pedra cuidadosamente escolhido / pela regra / do azar […]” (p.13), eis o primeiro poema. Se a natureza perdeu o sentido de força sagrada, se a paisagem – europeia, sobretudo, ou mediterrânica – não pode caucionar já qualquer locus amoenus ou mesmo locus horrendus, se tudo tem agora, enquanto “antologia de pedras”, o toque de uma artificial espontaneidade, o poeta cinge-se a fazer do poema o lugar onde tema e ideia se confrontam. JLBG é agudíssimo na perceção dessa fissura: em face do museológico acabamento de um espaço cultural, em face dos ossos da História, apenas a imaginação pode constituir-se como energia produtiva (“A / gaveta do museu ordena / os ossos anónimos do / esqueleto de Muge. / Para eles a nossa atenção. / É mais o que não sabemos do / que o pouco que sabemos / e o que dizem esses ossos?” (p.15).
Do mesmo modo que se observa a vida em estado de museu, do mesmo modo que se contempla, em vitral, a impassibilidade do mundo e dos objetos, sejam os de arte (pinturas, gravuras, esculturas, livros), sejam propriamente os artefactos e os seus gestos, o poeta pretende ultrapassar a insanável teoria, ou o fecundo teorema: “o pecado não está no / que o mundo figura mas / no olhar de quem vê?” – questão não só de crise da representação, mas de crise instalada no próprio mundo, lugar dos objetos culturais, agora esvaziado de quem possa olhá-lo e dar-lhe um sentido, mesmo se figurado. O mundo, nesta poesia de múltiplas crises (e a do verso é outro aspeto a considerar: versos suspensos, o trabalho subtil dos encavalgamentos, voz escrita em arranques e pausas, num ritmo insidioso), escapa, assim, à sujeição da filosofia. Não é mais o lugar do entendimento, antes o espaço da acusação a Aristóteles, Catulo, Horácio, autoridades para quem, da Poética à poesia erótica e desta ao didatismo da Arte Poética, pensaram o poema como construção de uma voz – de uma identidade.
É ainda esse o tema obsessivo neste Movimento: “Que sabia eu então de / dar ou tirar / a vida? Que entendia eu / da dor”, pergunta-se no poema “Inverno”, o que abre a segunda secção. Ir aos antepassados não garante a ansiada paz para aquele que escreve. Mesmo se, em clave irónica, o poeta pode contar histórias ou propor problemas (pensar-se em cada hóstia que um padre terá ingerido, roubar Bíblias e ir contra os mandamentos de Deus, recordar as noites “entre dois domingos”, enunciar o que havia sobre o rio Neretva…), o que se depreende dessa ironia e desse pendor narrativo é que a própria poesia é a encarnação de uma idade em crise, não apenas de um discurso em crise.
Poderia JLBG afirmar como Camões “errei todo o discurso de meus anos”, apostando na polissemia de um termo como “discurso” – percurso de uma voz e caminho outro – que daria sempre a sua poesia com o mesmo ethos: a crise é a do tempo, crise da idade. No magistral poema “A idade surpreeendente” lê-se: “Na manhã do outro dia o mundo / está sempre de volta / desço os degraus e escuto os / lamentos da madeira / (dissolvo uma aspirina num copo de água / esquinado o / copo sente-se logo melhor). Deixo agora que / me tome a / idade surpreendente / essa idade em que os amigos não / resistem à inveja / os inimigos esboçam um / adiado respeito. Saio à rua e reconheço / o mundo / desarrumado (é como / se o Verão tivesse dado uma festa e / o Outono aparecesse / fazendo-se / de convidado). Na idade surpreendente estamos / a meio de nada […]” (p.29).
Movimento não, assim, um livro de viagens, ou de burguesas aspirações a um outro tempo ou a um outro espaço. Trata-se, a meu ver, de um volume onde, aliada à vontade narrativa, persiste uma vontade poética, isto é, de fazer do poema, na sua corporeidade, a viagem mesma de uma linguagem que, como olhar atento, fosse a única realidade por onde viajar é possível. Em “Café Exílio”,”A Grade”, ou Segunda-feira outra vez”, por exemplo (mas outros poemas comprovam isso também), o verso cortado, o incipit constituído por um só artigo definido de abertura, ou por um verbo, outras vezes por expressões orais, eis o que, quase como substrato e marca de água do estilo de João Luís Barreto Guimarães, acaba por originar esse “luz de ternura” que molda os seres e as coisas desta poesia. Releia-se o fim de “O ralo”. Por detrás do gesto banal, que temos? “Uma tristeza infecciosa / este vazio amargo / isso a que / chamam presente / (quero eu dizer:) / passado” (p.37), súbita epifania – que a criativa pontuação agudiza, bloqueando a explicação que os dois pontos supõem, fechado o parêntesis – da própria existência que, classicamente, as cigarras cantam “sobre ruínas”, depois de muito se ter esperado uma história reescrita.

João Luís Barreto Guimarães
MOVIMENTO
Quetzal, 80 pp., 9,90 euros
* Crítica publicada no número 1311, de 30 de dezembro de 2020. Nesta versão corrigiu-se o título do novo volume de poemas de João Luís Barreto Guimarães, Movimento, erradamente grafado na edição em papel.