Todo futuro es fabuloso.
Alejo Carpentier
1 Algumas semanas atrás, quando os serviços noticiosos começaram a apresentar a imagem do coronavírus como cortina, um ramo de florescências vermelhas sobre uma calote cinzenta, eu julguei que tinham enfeitado os écrans com vistosos centros de mesa. Achei o enfeite interessante. Só depois comecei a perceber que se tratava da representação do vírus assassino, e ainda mesmo assim, passados todos estes dias, a imagem não se me tornou de todo repugnante.
Refiro esta impressão distorcida da realidade, só para dizer que me considero lenta de pensamento, e por isso as minhas opiniões sobre o futuro podem enfermar de vícios vários, como seja a esperança, o gosto pela sobrevivência, e até, concedo, uma certa dose de otimismo, esse vício a que um jesuíta sério dizia que aos que o possuem, uma vez acontecendo o contrário do que preveem, só lhe restaria o suicídio. Confesso mesmo que até posso pecar pelo sentimento mais reprovável de todos, o da pura superficialidade. Em todo o caso, em meu benefício, conto com algumas previsões caseiras a que o futuro me veio dar razão.
2Entre elas, lembro-me do depoimento que dei ao JL, em 2008, quando ocorreu a derrocada do Lehman Brothers, nos Estados Unidos da América, e em seguida, como se houvesse um vírus que gostasse de destruir bancos, assistiu-se a uma contaminação em cadeia em cujos escombros ainda hoje vivemos. Estando, então, em causa se o futuro próximo corrigiria a deriva neoliberal absurda a que tínhamos chegado, eu participei do grupo daqueles que consideravam que o esquema económico e financeiro, montado desde os anos 80 em todo o Ocidente, iria apodrecer sim, mas antes de apodrecer ainda teria de refinar durante muito tempo, até que um abalo extraordinário, de amplitude global, fosse capaz de o derrotar. Ora o momento que estamos a viver, e que o coronavírus invisível vem pôr a nu de forma dramática, infelizmente, tem todos os ingredientes para augurar uma enorme catástrofe e em simultâneo uma recomposição de valores, essa recomposição por muitos ansiosamente esperada.
Mas será assim? Será que vai ser necessário passarmos por uma prova tão dura para retomarmos um caminho que nos salve do esgotamento da Terra? Da subversão da Cultura? Do sagrado egoísmo das nações? Da eleição de figuras loucas eleitas por aqueles que serão as primeiras vítimas dessa loucura? Nos últimos dias, os meios de comunicação e as redes sociais explodiram em belos artigos de opinião, ensaios sobre esta questão, percebendo-se que existem duas linhas de esperança, entre si contraditórias – o desejo de que a catástrofe seja mais leve do que o previsto, e ao mesmo tempo a ideia de que se vive um momento de limpeza do apodrecimento do sistema. E, infelizmente, nesta equação, a amplitude da segunda parcela depende de dimensão da tragédia que a primeira implica. Estamos no meio da vaga, ainda não sabemos para que lado a roda da fortuna se inclina.
3Nesse sentido, um breve artigo de Laurent Joffrin publicado na semana passada no Libération, resumia de modo clarividente e simples a forma como de súbito a pesada herança ideológica dos anos 80 parece estar a ser abalada, sob os nossos olhos. Em poucas linhas, Joffrin refere sobretudo dois princípios que o coronavírus está a derrotar. Primeiro – a ideia fantástica de Margaret Thatcher de que não existiria sociedade, apenas existiriam indivíduos – “There is no thing as society” – princípio que Reagan, do outro lado do Atlântico, pôs em marcha, e que contaminou toda a Europa, nós incluídos, catecismo comum que desenvolveu em termos sociais o mais feroz dos individualismos. Joffrin refere-o porque uma tragédia como a presente vem demostrar que afinal existe sociedade. Isto é, existem grupos humanos unidos por ideias, interesses e vulnerabilidades comuns, que só se ultrapassam agindo em conjunto. Na verdade, em menos de um mês, o mundo compreendeu como é importante, e urgente, desfazer a ideia peregrina tão amplamente difundida, mesmo no interior da União Europeia, de que as empresas substituem o papel do Estado. O Estado Providência, o Estado Social.
Em segundo lugar, Joffrin foi mais longe, mostrando como o que está a acontecer mina as ideologias não só económicas, que promovem o individualismo e o “salve-se quem puder”, mas também alguns dos tiques filosóficos herdados das convicções existencialistas e libertárias dos anos 60 do século passado e que continuam a vigorar, como bandeiras anti-coletivistas, como se entre os dois campos não houvesse mais nenhum caminho. O título do artigo de Joffrin reproduz mesmo o princípio sartriano posto em dúvida, L’Enfer, c’est les autres?, para depois referir que o coronavírus, a peste que assola os nossos países, veio mostrar que os outros não são o inferno, os outros, num caso como este, são a nossa salvação. Porque, neste momento, a figura dos outros e o Estado são a única garantia que temos de que cada um de nós não vai ficar só. O que significa que, à beira de uma mudança de paradigma da sociedade dita tecnológica para uma outra ainda a configurar-se, e que muitos desenham como sociedade pós-humana, os dados que estamos hora a hora a recolher, nos dias que passam, terão de ser incorporados de forma obrigatória, senão de forma dramática.
Vale a pena reproduzir o remate do artigo L’Enfer, c’est les autres?. Pergunta o chefe de redação do Libération, sobre o abalo que o efeito do coronavírus está a produzir nas consciências, como se a Humanidade de súbito acordasse de um pesadelo ontológico, ao enfrentar um pesadelo de enfermidade: “Efémera tomada de consciência? Sentimento fugaz que desaparecerá quando este amargo parênteses da crise sanitária tiver desaparecido? É muito cedo para concluir. Pressente-se, no entanto, que está a acontecer uma alteração histórica que reabilitará a sociedade e o Estado, longe da utopia esgotada do individualismo”. Este texto foi-me pela primeira vez enviado por Hélder Costa, depois reparei que deu a volta ao mundo. Ainda bem, pois na verdade não se trata apenas de um texto político, trata-se de um texto de cultura, o espaço que aqui interessa.
4 Precisamente, a letra da canção de Sérgio Godinho faz a ponte para a questão da cultura – “Hás-de me dizer/ Se é cada coisa por seu lado/ Ou isto anda tudo ligado”. É neste momento que a porta da Cultura se abre em face do futuro. Resulta evidente que o apodrecimento do modelo neoliberal na economia e na construção da sociedade desigual, não tem agido sozinho, tem sido amplamente amparado pela proposta cultural que tem caminhado ao lado do modelo tecnológico surgido ao longo dos últimos 20 anos.
Sejamos claros – ninguém põe em causa os benefícios dos novos meios, fantásticos, a maravilhosa oportunidade de terem permitido entrarmos através dos recentes meios de comunicação na sociedade do conhecimento, que transformou o nosso olhar sobre o mundo, aproximou culturas, permitiu intercâmbios extraordinários, cruzamento de informações, fez expandir o acesso dos públicos a todas as Artes, criou uma nova comunidade comum à face da Terra. Só os distraídos podem diabolizar a sorte que temos de ser cidadãos a vivermos no início do século XXI. E, no entanto, paralelamente, assistimos à expansão daquilo que, neste mundo maravilhoso de possibilidades, tem constituído o lado da sua degradação. Sublinho este aspeto porque, passado o atual momento crítico, por certo economicamente trágico para a grande maioria das sociedades à face da Terra, o confronto que irá acontecer no plano da Cultura e das Artes, será apenas o prolongamento do confronto a que estamos a assistir hoje em dia.
Em minha opinião, devem desiludir-se os que pensam nos dias de hoje, em que estamos cheios de tristeza e comoção, vivendo momentos que se assemelham a um terror global, que por ficarmos circunscritos em casa, muitos a confessarem poder olhar as estrelas pela primeira vez, outros o mar, outros a verem com calma filmes que antes nunca tinham visto, a ouvirem discos antigos, a falarem com os vizinhos, e a lerem um livro que nunca tinham imaginado ler, que tudo isso só por si mudará o que se tem verificado até aqui. A crise sanitária, por grave que seja, não tocará na deriva da superabundância de dados, a maios parte deles não informativos, muitos deles deformativos, e que continuarão a circular sem peso nem medida, sem autoria nem garantia de crédito ou origem.
Não tocará na tendência para aumentar o fetichismo tecnológico. Não tocará na confusão tremenda que se estabelece entre a Cultura como difusão das Artes, e a Cultura como entretenimento grosseiro. Não diminuirá o fluxo de imagens sem palavras que inunda o olhar privado e público. Não diminuirá a histeria da receção ininterrupta que nos torna autómatos. Disse Artaud com razão e grande alcance – “Para onde quer que nos voltemos, o nosso espírito não encontra senão vazio, quando o espaço está repleto”. É isso mesmo que acontece agora, e será isso que acontecerá depois, quer a crise sanitária leve da face da Terra apenas uns milhares, ou venha a levar milhões.
Estamos num espaço comunicacional repleto, isto é um espaço que tende para o vazio. E esse vai ser o grande combate e a grande resistência que, com crise profunda, ou crise mais ligeira, vamos ter de manter. Independentemente da pobreza, da perturbação a que ficarão votados muitos dos artistas e agentes culturais, no imediato, tal como se está a prever. Mas essa questão é de uma outra ordem. É da ordem administrativa, quando os governos mostrarem que capacidade têm de entender para que servem os agentes não produtivos, como nos chamam, na economia. Como será encarada a sobrevivência dos que criam, como serão mantidos os suportes da criação que alimenta o imaginário das sociedades. Esse é um problema de contabilidade e apreço, e mal ou bem será resolvido.
O que me pergunto, depois deste abalo, de ordem financeira, social, psicológica, é se será a cultura da promoção da banalidade que irá vingar, ou mesmo triunfar, pois existem todos os ingredientes no horizonte para que assim seja. Ou se, pelo contrário, o que está a acontecer inspirará novas práticas, novas formas de valorizar os instrumentos densos da Cultura, na base dos quais se encontra a Leitura e a Literatura. E sabe-se bem porquê. Sobre o caso, não são necessárias mais palavras.
5O que está a acontecer é um abalo de terra nas convicções daqueles que mantinham a ideia de uma fuga para a frente a caminho da sociedade da desigualdade, onde mesmo a própria Cultura é canibalizada pelo proveito e pela finança. Assistiu-se sem apelo nem agravo a uma conceção de fartura de recursos técnicos que engoliu a cultura dos fins. Uma cultura dos meios que tem rodado à solta sem ter em conta as finalidades. A minha ideia, superficial, esperançosa, e até otimista – aquela que arrisca a que tenhamos de nos suicidar se tal não acontecer – é que depois de uma tragédia as Artes e a Literatura retomarão o sentido do acontecimento, voltarão a ele mil vezes, para o interpretarem através da sua narrativa, uma e outra vez, na busca do entendimento do que é ser humano. Assim foi com a Grande Guerra, a Grande Depressão, a II Guerra Mundial, o Holocausto, as Guerras Coloniais, momentos históricos que suscitam a meditação sobre a sentido da nossa finitude e configuração da nossa espécie.
Calculo que milhares de artistas e escritores, nesta altura, estejam diante dos computadores a ensaiar, a partir da metáfora destes dias, novas formas, aquelas que os que lhes sucederem hão-de apelidar de uma nova modernidade. Mas ainda não conhecemos esse rosto. Por isso, para além da tragédia que nos consome, pensemos como Alejo Carpentier, que todo o futuro tem alguma coisa de fabuloso, pois será inventado pelas mãos que inventam, com ideia de salvação de alguma coisa outra.