Não Só Mas Também é o título de um livro de Augusto Abelaira (AA) que melhor define a personalidade do autor e a natureza do homem singular de que recordo sobretudo as conversas fascinantes, e cuja íntima natureza, em boa verdade, desconheço. Conhecemo-nos na Faculdade, eu caloira, ele finalista de histórico-filosóficas. Acompanhei-o em várias circunstâncias, fomos amigos durante mais de meio século, até à sua morte. E se digo que o “desconheço” é porque ao longo dos anos falámos de tudo e nunca falámos de nós. Mesmo quando abordamos assuntos e procuramos soluções para as nossas vidas privadas.
Abelaira era um ser secreto, não sei se por timidez, se por reserva, que não mostrava facilmente os seus sentimentos nem deles falava, por pudor, certamente, mas também por regra de conduta, que acabava por passar aos outros, sem nada impor. Nos anos 50 era algo cético, embora se empolgasse quando discutíamos ideias. Nos anos 60, quando nos começámos a interrogar mais sobre o nosso quotidiano, as nossas relações, as nossas certezas, AA não cedeu a modas. Esses temas reservava-os aos livros. Ou talvez às mulheres por quem se apaixonou. Ou ainda a raros amigos íntimos, aqueles a quem consentia o tratamento por “tu”.
O que era aparentemente contraditório: assumir, em muitos aspetos, uma imagem de outros tempos, sendo um homem enamorado do futuro. E vem-me então à memória uma das primeiras recordações que dele guardo quando, vinda do Liceu Francês, onde dominava o espírito da liberdade, mergulhei no ambiente sufocante da Faculdade de Letras de Lisboa. AA tinha na altura uma namorada, uma jovem morena de aspeto recatado que ele acompanhava no fim das aulas. Digo “namorada”, embora entre eles não se tivesse jamais notado qualquer manifestação de intimidade, nem sequer de ternura e menos ainda de amor.
Na rua, caminhavam lado a lado, sem dar o braço. Até porque do braço dele pendia um guarda-chuva que mantinha uma distância regimental. O namoro acabou, não sei quando. Mas ao longo da vida esse guarda-chuva perdurou, não como objeto utilitário, mas como reserva de privacidade, resguardo de emoções que AA só deixava transparecer relativamente a acontecimentos ou ideias. Muito raramente em relação a pessoas. Ternuras, mimos, palavras doces, que lhe ouvisse só para gatos.
E no entanto sabíamos que era um homem sensual. Daí que agora, depois do seu desaparecimento, rememorando os anos de convívio e relendo o que escreveu, não resista a um pequeno exercício mental tanto a seu gosto e me interrogue sobre se para ele os amigos foram verdadeiramente amigos, se os amores foram verdadeiramente amores ou simplesmente personagens úteis ao diálogo que ele manteve com o mundo, esse mundo que ele questionou incessantemente. Personagens às vezes simpáticas, fascinantes, mesmo. Outras terrivelmente maçadoras. AA não escondia o fastio do tributo a que o convívio o obrigava.
Porque Abelaira, como ser ético que era, reconhecia aos amigos direitos mais do que deveres e nessa medida permitiu afetos, lealdades, cumplicidades. E sobretudo o prazer, cada vez mais raro neste tempo em que se privilegia a segurança da certeza e as grandes inquietações estão banidas, a par da partilha do gosto de discorrer, de inquirir, de pôr em causa o óbvio. Ou o que é considerado óbvio. Com ele tudo podia ser objeto de discussão. Porque para ele tudo poderia ser o mesmo e o contrário. No plano das ideias, considerava que era absolutamente proibido… proibir.
Era já assim quando o conheci. Na Faculdade, era alguém muito especial, reconhecido pela inteligência e pelo saber. Nos intervalos das aulas, formava-se em volta dele um grupo de rapazes – dos poucos que lá andavam – e algumas raparigas interessados em escutar um colega mais velho — AA andara primeiro em Direito — conhecedor de coisas com que eles nem sonhavam.
“Os verdadeiros homens, escreveu no seu livro Não Só Mas Também, são as crianças. Quando crescem deixam de perguntar, esquecem-se da sua humanidade, regressam aos macacos. Os macacos e até as formigas conhecem as respostas, ignoram as perguntas. As respostas variam com os tempos, só as perguntas permanecem, embora possam mudar de sentido“.
Era um homem interessado, AA, por várias áreas do conhecimento: da filosofia à história, da música às artes plásticas, da antropologia à etologia, da física às neurociências. Quantas vezes não nos deixámos ficar nos bancos do velho claustro, presos à conversa e à discussão suscitada, alheios à chamada para as aulas e deixando passar o professor que indagava, desconcertado, “então, não vêm?” E nós respondíamos “hoje não, está-se melhor aqui “. O que representava um enorme desafio.
Abelaira tinha consciência do fascínio que exercia sobre os ouvintes e os interlocutores. Mas era implacável consigo mesmo. Na obra já citada, escreve: “Ao desejarmos que nos ouçam, e conversar, é mais desejar ser ouvido que ouvir, representamos um papel não necessariamente o nosso, se verdadeiramente sabemos qual é o nosso. Talvez à procura do nosso, mas nem isso (…) Passei a minha vida a representar, possuo o dom da palavra, sempre sofri quando senti nos outros a desatenção”. O que significaria uma prova de desamor.
No sábado que antecedeu a sua morte, fascinou a assistência que o escutou na Sociedade do Século XVIII, como se quisesse deixar, antes de partir, o seu legado. E sentir-se plenamente livre e vivo pela última vez porque pensar e fazer pensar foi a sua forma de viver. A independência que manteve ao longo da sua vida nunca o impediu, contudo, de assumir as suas responsabilidades de cidadão. Foi um democrata convicto, empenhado num projeto de sociedade progressista, culta e livre.
A liberdade era para ele um valor essencial e nela radicava o seu sentido de tolerância, mesmo quando o dever de tolerância que a si se impunha lhe acarretava sofrimento. Era um individualista e um ser solidário. O que o levou a assumir a responsabilidade de ter votado na atribuição do Prémio da Sociedade de Escritores a Luandino Vieira, quando não o tinha feito, por solidariedade com os seus companheiros de júri, presos como ele.
Abelaira era um cético militante mas não era um pessimista. Durante o fascismo, ansiava pela libertação e nunca o escondeu. Emocionou-se com a campanha do general Delgado, empenhou-se no Programa para a Democratização da República. Em abril de 1974, trabalhava em O Século e escrevia diariamente, na primeira página do jornal, uma pequena nota crítica. Foi diretor da Vida Mundial, onde trabalhamos juntos. E Trabalhar com AA era um infinito prazer. Porque ele encarava a redação como os grandes mestres do Renascimento os seus “ateliers”. Não como um simples local de trabalho mas como um espaço de discussão de acontecimentos, de ideias, de aprendizagem e transmissão de conhecimentos
O fecho de O Século separou-nos. Voltamos a trabalhar juntos na RTP onde ele foi diretor do Departamento de Assuntos Culturais e o Mário Dionísio director de Programas. Em 50 anos de convívio, nas voltas da vida, o relacionamento nunca se alterou. Nem os casamentos desfeitos, nem os amores renovados que cada um foi fazendo. Mantivemos em comum amigos antigos e novos amigos. Ele foi trazendo as suas namoradas a minha casa, como trouxera a Susi, antes de se casarem, quando ela era ainda uma menina.
Os cafés – onde ele escrevia os seus livros — continuaram a ser locais privilegiados de convivência. Deixamos de fazer piqueniques porque se perdera o pretexto de dar ar às crianças. Mas permaneceu o gosto, também comum, das viagens que AA manteve até ao fim da vida. Com uma enorme fidelidade por Itália — cenário do seu primeiro romance, A Cidade das Flores. Agora já sem Rosabianca, mas com Maria Artur, minha amiga e sua última companheira.
Manteve até ao fim a tertúlia da “Cister”, aos sábados de manhã, a que compareciam a Maria Artur Botequilha, a Helena e o José Carlos Serras Gago, a Maria Emília Brederode e o José Medeiros Ferreira, o Manuel Pedroso Marques e eu, por vezes o Orlando da Costa, a Miriam Halpern e o Veiga Pereira. O Augusto fez ainda uma última amizade que o entusiasmou. Refiro-me a Carolino Monteiro que avivou o seu interesse pela biologia e a genética.
Agora os sábados já não têm graça. A “Cister” tornou-se um café banal. A mesa onde o Augusto Abelaira escrevia e esperava por nós já não está reservada. A tertúlia desfez-se. Porque a sua ausência e de outros que foram partindo é demasiado presente.
Augusto Abelaira: não só mas também

A liberdade era para Augusto Abelaira um valor essencial e nela radicava o seu sentido de tolerância. Era um individualista e um ser solidário, um cético militante mas não um pessimista