“O que em mim sente está pensando” é uma afirmação de Fernando Pessoa que implica uma complementaridade ou acordo entre o pensamento e a emoção. Ela exprime, dentro do contexto do nosso Modernismo, uma reação ao subjetivismo não raro levado ao extremo quando, nas primeiras décadas do século passado, muitos poetas não se furtavam a um derramamento emocional que se diria vindo do Ultra-Romantismo. Sem dúvida que, conforme nos aproximamos dos nossos dias, a situação vai-se tornando diferente. Mas a “intelectualização das emoções” e a “emocionalização das ideias”, a que Pessoa também se referia, não deixa de estar presente quando é sobre a poesia que se reflete.
Jorge de Sena esteve sempre atento a esta questão. Ele pertence a uma geração, geração essa onde sobressaem Ruy Cinatti, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade ou Carlos de Oliveira, cuja obra começa a ser publicada nos anos 40, mas que ganha toda a sua força nas décadas seguintes. Depois de Poesia 1, que inclui todos livros de Sena publicados em vida do autor, sai agora Poesia 2 que colige a sua obra poética póstuma. Ficam, assim, recolhidos finalmente todos os poemas de Jorge de Sena, numa edição preparada por Jorge Fazenda Lourenço.
Considerada na sua totalidade, a poesia de Sena manifesta uma força expressiva que vai ao encontro de um lirismo especulativo onde logo vêm à superfície tensões dramáticas muito marcadas, como ele disse, por “um comprometimento humano da poesia pura”. Há na sua escrita um sentido extremamente lúcido – porque a poesia de Sena é também pensada – que se torna vigilante, muitas vezes voltada para uma realidade angustiante e adversa.
Talvez seja a partir deste tonus que se terá desenvolvido uma certa direção que ganha corpo neste segundo volume agora publicado. Poesia 2 estende-se por 900 páginas e obedece a uma ordenação cronológica que principia numa juvenilia, seguida de um alargado conjunto de outros poemas cuja escrita corresponde ao tempo de publicação dos seus livros, desde Peregrinação até Exorcismos e Conheço o Sal, mas que não foram incluídos neles. Há ainda outros conjuntos de poesias, nomeadamente as que correspondem ao livro póstumo Dedicácias e vários novos inéditos.
Diga-se desde já que esta Poesia 2 assume um carater que se diria mais documental, por vezes quase memorialístico, na medida em que muitos dos poemas são uma direta ou espontânea reação a momentos de natureza circunstancial ou uma transposição desabusadamente temperamental que se tornam extremamente cortantes, cruzando-se com um confessionalismo por vezes amargo e desencantado. Que assim é, este excerto de um poema que vem de 1939 parece, aliás dolorosamente, dizê-lo: “Confessar tudo!… / E o mundo que fosse uma folha de papel como esta / e pudesse ser rasgado / como este poderia sê-lo / desde que eu abandonasse o palmo de altura / entre o chão e os pés / doloridos por pensarem o chão para os outros / quando afinal é p’ra eles /eles / e para mim – na lama, no líquido, que eu sou, / em busca da horizontalidade… / na lama donde nem a própria poesia me salva!…”
Joana Lapa acaba de publicar o seu segundo livro de poesia intitulado, Deusa da Transparência, o qual é acompanhado pela reprodução de várias fotografias de Manuel Magalhães. Esclareça-se desde já que ela, a autora, é também a crítica de arte Maria João Fernandes, como se depreende da nota biográfica que numa das badanas do livro se pode ler.
É no limiar deste seu livro que podemos encontrar um texto do poeta e critico francês Robert Bréchon que é, sem dúvida, um bom caminho para que à sua luz sejam lidos estes poemas. Chama-se aí a atenção para a dimensão expressiva que a palavra transparência, a qual logo aparece no título, representa ao longo dos poemas. Neles há uma constante referência a uma jovem junto do mar, a qual ganha uma evidência ou liuminosidade dada pelo ar e pela água que, como diz Bréchon, a torna “em cosa mentale”.
Descreve-se, como se diz num poema, uma presença “mineral e aérea, marinha e vegetal”. Essa presença alarga-se para outras imagens como estas: “coluna libertada”, as “pupilas de terra”, “a simetria da brancura”, uma “mesa de sal”. Ao mesmo tempo, surge reiteradamente a alusão àquela jovem que, como diz Maria João Fernandes – num texto que, ao lado do de Bréchon serve de limiar aos poemas – ganha “um sentido de amor e transcendência”. Se se considerar o que ficou apontado no início desta crónica, será este, portanto, um exemplo que nos é dado não através de uma poesia pensada mas, sobretudo, de uma poesia sentida…
Francisco José Craveiro de Carvalho, cuja poesia já tinha aparecido na revista Relâmpago (nº3, Outubro de1913), reúne agora em livro poemas ali já publicados, aos quais acrescenta outros inéditos. O livro intitula-se As Sapatilhas de Usain Bolt & Outros Tercetos. Será de não esquecer que estamos frente a um poeta cuja formação é matemática, como é referido numa nota biográfica que acompanha o livro. Daí o desenvolvimento, em muitos destes poemas, de um imaginário em que o universo da matemática ou da geometria se faz sentir, muitas vezes diferido ou voltado ao avesso por uma figuração irónica, como se pode ler num dos tercetos: ” Bonito realmente era o friso / dos cinco sólidos platónicos. / Pena o pó ou uma teia de aranha”
Outras vezes há uma espécie de acertar no alvo de um enunciado mais ou menos filosófico como no terceto que se segue com uma vaga reminiscência do “penso, logo existo” cartesiano: “Latir não é suficiente / para intervir. / Mas o cão pensa”. Ou, ainda, numa transfiguração de uma figura geométrica: “A circunferência tem prazer / em ser a a cara da mulher / que a criança acaba de fazer”.
À margem de um dos tercetos, pode ler-se uma referência a Alexandre O’Neill; apesar da poesia de As Sapatilhas de Usain Bolt ser muito diferente, há nela igualmente o comprazimento no jogo verbal, no modo como se recorre a desvios irónicos que acabam por fraturar as imagens ou o sentido das palavras. Poderíamos, então, dizer: “Por um só poema / compro o livro. / É para isso que eu viajo”. E vemos, agora, que precisamente a poesia neste livro é pensada…