Agustina Bessa Luís é desde há muito considerada uma das maiores escritoras da nossa literatura e da nossa língua. Aos 81 anos, com uma vasta de obra (mais de 50 títulos), foi-lhe atribuído agora o mais importante galardão do nosso idioma, o Prémio Camões. Exactamente meio século depois de ter publicado o romance, A Sibila, que não só representou a sua grande afirmação como uma pequena revolução na nossa novelística. A propósito daquele prémio e desta efeméride, até agora não assinalada, entrevistamos a escritora, revelamos um fragmento do seu próximo romance, publicamos textos de dois especialistas, Maria Alzira Seixo e Álvaro Manuel Machado, e de Alberto Vaz da Silva, que por sua vez revela uma saborosíssima carta da romancista -além de lembrarmos pequenos fragmentos de artigos de quem primeiro pôs em relevo a singularidade e o significado da obra da autora: Óscar Lopes, José Régio e Eduardo Lourenço
Não busca a perfeição da escrita. Escreve, está sempre a escrever ou a ler, num permanente envolvimento com as palavras. E em cada um dos seus livros acerca-se do “segredo ” da natureza humana. Chegar à realidade é o desígnio de Agustina Bessa-Luís, que tem pronto para publicação um novo romance, Antes do degelo. Escreveu-o numa revisitação a Crime e Castigo, de Dostoievski, para falar da culpa como um “excitante”. O livro só sairá depois do Verão, porque acaba de reeditar Sebastião José e, como a escritora afirma, “não podemos abusar nem da paciência dos outros, nem do espaço que nos dão no mundo”.
Jornal de Letras -As suas declarações, quando soube que lhe tinha sido atribuído o Prémio Camões, foram irónicas, se não mesmo reveladoras de um certo desdém. Pouco lhe importam os prémios ou foi simplesmente provocatória?
Agustina Bessa-Luís –Não. As pessoas é que têm uma ideia feita sobre mim e tentam aplicála às circunstâncias. Na verdade, já tenho uma certa experiência de receber prémios, não tão valiosos em termos pecuniários e mesmo pelo sentido do próprio prémio, como o Camões, e comportei- me sempre da mesma maneira, com uma satisfação e um reconhecimento muito grandes. Não há nenhuma ironia nesse sentido.
JL –É então apenas uma provocação, quando diz que preferia receber o Nobel da Paz ao da Literatura?
ABL –Isso é verdade. De resto, o Prémio Nobel da Paz foi dado sobretudo a mulheres. E honrava-me particularmente poder fazer alguma coisa que tivesse um significado que fosse mais duradouro, assim como um cientista que procura a cura de uma determinada doença. Considero uma doença, uma espécie de febre, de loucura aquilo a que estamos a assistir no mundo. E não vamos chamar-lhe eixo do mal, é a natureza humana que se manifesta. Se eu encontrasse um caminho para o entendimento, para a cura, a minha vida teria um sentido extraordinário.
JL –E não o pode alcançar pela Literatura?
ABL -Acho que não. A Literatura tem um lado de diversão, de mistificação. O artista aprende sempre a seduzir, a encantar e a ser considerado.Henry Miller disse que havia livros como Morte em Veneza, que lhe diziam pouco, porque não correspondiam à realidade, mas ao desejo de criar uma atmosfera de beleza e de encantamento. Eu fui recordar Morte em Veneza e, de facto, ele tem razão, porque um homem devorado pelo desejo, não se manifesta daquela maneira. A realidade é outra coisa e acho que o artista que rende homenagem à realidade do mundo e da vida é realmente o grande artista.
JL –Que exemplo daria?
ABL –Sempre Dostoievski. Ainda que fosse esquizofrénico, perturbadíssimo, era um homem que tinha o mundo com ele. Não foi sem razão que mais de cinco mil pessoas acompanharam o seu enterro. Ele não era unicamente lido, era reconhecido como um grande homem. Os grandes na Literatura têm que ser também grandes na Vida.
Compreender o segredo
JL –O que mais admira em Dostoievski?
ABL -Admiro nele esse olhar que vai até ao fundo do segredo da vida humana. Esse olhar sem medo. E são poucas as pessoas capazes de se despirem dos artifícios para chegar à realidade e fazê-la reconhecer pelos outros. Porque é aí que se pode encontrar aquilo que por palavras incipientes chamaria a cura. Ele é um caso espantoso, talvez o único.
JL –Não é esse também o seu olhar?
ABL -Desejaria que fosse. Mas falta-me esse lado profundamente destemido que eu acho que só um homem pode ter.
JL -Porquê?
ABL –A mulher não tem o sentimento de desespero que o homem tem. Porque a mulher completa-se em si mesma, na sua própria criação, como ser que se reproduz e dá vida a outro ser. Portanto, ela não se exprime pela desesperação. O homem sim.
JL –Mas precisamente por isso, as mulheres não estão mais aptas para encontrarem o caminho para a “cura” de que falava?
ANL -Talvez esse seja o seu caminho, no futuro, essa busca, essa intervenção, esse estar presente com o homem. A mulher tem muito que dizer e sentir.
JL -Atribui-se-lhe, por vezes, uma certa perversidade: será o seu olhar desassombrado sobre a natureza humana?
ABL -A perversidade está no querer conhecer, naquilo a que muita vezes para simplificar se chama descida aos infernos. E a necessidade de conhecer o ser humano é um desígnio, um destino, uma força que nos pode acompanhar até para além da vida. Necessidade da culpa
JL –Antes do degelo, o seu novo romance, centra-se em Crime e castigo, de Dostoievski. Porquê?
ABL –São dois jovens, que se acompanharam desde a infância e fazem o curso de Medicina. Um deles debruça-se sobre esse romance e tenta saber o que é aquele crime. A questão é saber se quem mata é realmente um criminoso ou se é provocado pelo facto de ser destituído da sua humanidade pelo outro. A personagem de Dostoievski, Raskolnikov, ao falar da velha que mata, considera-a menos que uma larva para justificar o seu desprezo pela sua vida. Mas há um momento em que ela lhe diz como está pálido e lhe pergunta se está doente. Essa e foi o momento que lhe deu para que o crime não fosse executado. Só que ele não o viu, porque quer ser um criminoso. O meu romance anda à volta da necessidade do crime, que dá origem à culpa. E a culpa dá origem a coisas prodigiosas, como, por exemplo, a uma civilização.
JL –A uma civilização? Como?
ABL -Sim, a coisas grandiosas que sem a culpa não existiriam. De certa maneira, o crime quase foi necessário até hoje. Alguma coisa tem de o substituir, mas ainda não sabemos o quê.
JL –Quer dizer que reequaciona a questão da consciência moral que Dostoievski introduz em Crime e Castigo?
ABL –Dostoievski introduz um discurso moral, eu não.. Há antes uma investigação, digamos que científica. Não introduzo valores
JL -Porque faz uma leitura dos tempos que correm?
ABL -Sim, o meu romance passa-se na actualidade. Sendo um olhar sobre o mundo dostoievskiano, é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o tempo que vivemos, embora haja um enredo, o que faz com que o leitor não se afaste.
JL –Nessa reflexão, além da culpa, cabe o medo que mina as sociedades ocidentais …
ABL –O medo é hoje uma arma, porque não podemos viver numa sociedade totalmente policial. Mas o medo sempre foi uma arma em todos os tempos, nas sociedades organizadas, ligado à superstição, à mitologia e, hoje, ao fim do mundo, dependente das grandes catástrofes originadas pelo Homem. O terrorismo é um facto e as pessoas vivem acossadas. O acto terrorista em si explode na imaginação das pessoas. Mas temos de confiar na sobrevivência. Há pouco tempo, em Paris, houve um momento em que senti que essa confiança existe em pequenos indícios.
JL –Que momento foi esse?
ABL –Um chofer de táxi negro, homem de uns 40 anos, deu uma gargalhada de uma enorme felicidade, quando me despedi e disse qualquer coisa insignificante, relacionada com o tempo ou com o bom dia que lhe desejava. Pensei que ali estava alguém com a capacidade de sobrevivência que um europeu já não tem. São povos extraordinários, com uma capacidade fantástica do riso, da música, de estar no mundo de uma maneira grata e feliz. Quando se diz que a Europa vai ser invadida pelos árabes ou por hordas de chineses, essa não é a questão. Acho que o europeu tem a sua destruição dentro dele.
JL –E pelo lado do terrorismo, não há culpa?
ABL -A consciência de crime é tanto maior quando temos uma entidade, uma personalidade perante nós, quando há a consciência do Outro. Matar uma multidão pode não significar nada. Orson Welles disse-o muito bem, num dos seus filmes.
JL –Acha que não passa de uma figura de retórica falar-se do respeito pela vida humana?
ABL -Sim. Já disse numa dessas entrevistas que as grandes verdades não me impressionam. Estamos a viver numa sociedade de verdades engarrafadas. Se as bebermos, não sei se não serão uma zurrapa.
JL –Também afirmou, numa entrevista, que o escritor é um terrorista…
ABL –De certa maneira, porque tem de abalar a sociedade e abrir caminhos para novas reflexões.
JL –E a guerra também é um excitante do poder?
ABL –Até hoje foi. Sabemos como trouxe avanços extraordinários, na Medicina, ou até em novas maneiras de viver e de aproveitar o mundo. Mas o ideal seria conseguir tudo isso sem nos destruirmos, sentindo o Outro como nós próprios. Isso é que seria uma civilização.
JL –Como vê a guerra do Iraque?
ABL –É um impasse, uma situação muito ingrata. Era preciso saber sair desse labirinto. Já os gregos o definiam como tal, o labirinto onde está o monstro e de onde é mais difícil sair do que entrar.
JL -Porque o monstro é a própria natureza humana?
ABL -É a própria natureza humana, que exige sacrifícios sangrentos. É assim desde o princípio, mas não quer dizer que o seja até ao fim dos tempos.
JL –É curioso que, sendo uma mulher conservadora, de direita, é muito considerada, mesmo amada pela esquerda.
ABL -É que a esquerda, de um modo geral, gosta de pessoas exemplares.
JL –E acha que o é?
ABL -Tenho trabalhado muito para isso e construído o meu monumento, também com alguns sacrifícios.
JL -Quando, há 50 anos, publicou A Sibila teve consciência que era um romance que rompia com os modelos que existiam na altura?
ABL –Não, não tinha a mais pequena ideia que poderia vir a ser simbólico. Limitei-me a escrever a história de uma família que conhecia bem, por isso resultou. E também funcionou o prazer de escrever, que tenho desde criança, quando eu era a heroína da turma, porque sabiam que eu fazia belas redacções e que era capaz de ler um texto e recriálo.
JL –Teve também, desde sempre, o prazer dos aforismos?
ABL –Sim, sim. O aforismo é uma síntese de um conhecimento, que, por vezes, vem de há muito tempo e manifesta-se de repente. Por vezes, é uma forma de sintetizar toda uma vida.
JL –Como vê A Sibila meio século depois?
ABL -Penso que a escreveria de outra maneira e provavelmente estragava tudo. Acho que corresponde a mim mesma, num tempo, como a escrevi, como a senti e como a vi.
JL –Costuma reler os seus romances?
ABL –Não. Só as provas. Às vezes, a minha tradutora diz-me que aparecem passagens repetidas e até personagens. Isso acontece também com os pintores. São as coisas que mais nos impressionam. E, realmente, a minha tradutora é íntima de todas aquelas figuras, que conhece melhor do que eu.
JL –Vê-se livre rapidamente das suas personagens?
ABL -Sim. Há uma altura em que estou muito ligada, até para as conhecer, mas depois desprendo-me com facilidade. E elas também não precisam de mim.
JL –Escreve muito, já tem mais de 50 livros publicados…
ABL -Eu gosto de escrever e se não o estou a fazer, leio. Tenho essa necessidade de estar ligada à palavra.
JL –Mas há quem entenda que escreve demasiado, com prejuízo de uma escrita mais depurada…
ABL -Mas eu não sou uma autora perfeita, nem que se preocupe com a perfeição. Evidentemente, há textos que são mais valiosos, mais acabados. Um crítico português disse que eu era uma autora de pequenos textos e tinha razão. Realmente, não sou uma autora de fazer planos, como o Thomas Mann, que levou dez anos para escrever A Montanha Mágica. Nesse tempo, eu escrevia dez livros. Cada escritor tem a sua maneira de estar no mundo. Grandes autores como Flaubert ou Gide tinham essa necessidade de aperfeiçoar a sua linguagem. Eu não. É muito português, de resto, não se valorizar demasiado. É um dos nossos defeitos e, ao mesmo tempo, uma qualidade. Porque, na verdade, é tudo transitório.
JL –Escrevendo tanto, porém, há quem diga que se arrisca a ser um Camilo de saias…
ABL –Apesar de gostar muito dele, não quer dizer que me pareça com o Camilo. Não tenho aquele lado tenebroso que ele tinha, porque era um homem mole, incapaz de criar um conflito. Camilo escrevia sobretudo para mulheres e há livros em que se sente que faz um esforço para não ser coerente com ele próprio, porque perdia a clientela. Mas evidentemente, ele era um génio.
JL –A Sibila tem um lugar especial na sua obra?
ABL -Não. Há outros livros de que gosto mais, sobretudo os mais realistas, que fogem à ficção. Por exemplo Sebastião José, agora reeditado, e que foi escrito com muita reverência em relação à realidade e à personagem, que procurei conhecer e radiografar. Prefiro sempre esse lado histórico e biográfico.
JL –Quais são os livros que considera essenciais para compreender a sua literatura?
ABL -A Monja de Lisboa. Sem me afastar um milímetro dos factos que me foi dado consultar, para conhecer aquela mulher, faço-me explicar por ela. Sou muito aquilo: um lado ligeiramente mistificador e, ao mesmo tempo, uma capacidade de transformar essa mitificação numa certa grandeza criadora e de sinceridade profunda, em que já actua o milagre.
JL –Voltando ao Prémio Camões. Como vê os seus antecessores? Sente-se em boa companhia?
ABL –Sim, na medida em que eles tiveram a sua oportunidade, que é a dos escolhidos. Porque a contrapartida dessa escolha é uma obra. Evidentemente, conheço mal alguns deles, mas conheço bem outros, como o Eduardo Lourenço ou a Maria Velho da Costa. E tenho uma grande honra e alegria em estar junto deles, nesse panteão dos vivos, que são os prémios.