O poder devorador da palavra
“O mar é como tu, mãe”.
Ana Margarida de Carvalho
Não é um livro de destemperança, este, ainda que a traga em si, contida, oculta no sulco das palavras. Nem mesmo dor seria a palavra apropriada para Que Importa a Fúria do Mar, romance de estreia de Ana Margarida de Carvalho. Outras vêm à ideia quando a água se enrosca em anéis de nitidez n…arrativa como coisa escura, semi-informe ou luzente, à semelhança de uma orquídea sem caule. Escreve: “O mar é a mais límpida, a mais extensa e a mais habitada das metáforas” que levam as mulheres dos pescadores a dizer que os homens dos mares eram parecidos com elas na hora dos partos.
Água, onde tudo flui e emana, é a palavra ajustada a esta narrativa intensa e voraz que tem como personagens os quatro elementos – água de mar e rio, de purificação; terra de prisão, coisa nauseabunda, amor desencontrado; ar de sopro de vida, onde repousam os despojos de uma humanidade perturbada; fogo, o das palavras deste texto que, por vezes, se fractura em escada e nos deixa respirar numa leitura prazerosa.
Mais do que na descrição de quadros ficcionais, Que Importa a Fúria do Mar detém-se na teia do enredo, as acções são apresentadas como repetidamente presentificadas porque a vida assim o exige – a existência está tanto no coração dos homens como na multidão de gritos represos. Todos sabemos que um romance se compõe de invenção verbal, discursos, silêncios, relações (não-relações), lugares, do encadeamento entre tempo e espaço, de um estilo que aqui é diverso de capítulo para capítulo. Nesta história, onde a melancolia é estímulo para a criação, as variações de registos de enunciação são diversas e os procedimentos de narração múltiplos. Passa-se de uma opacidade significativamente densa do ponto de vista discursivo a uma desordenação febril mais despojada e livre, de vitalidade singular e despretensiosa.
Pouco interessa contar o enredo de um romance situado ao tempo da revolta da Marinha Grande (1934), o leitor encontrar-se-á nesse labirinto. Diga-se que os insurrectos iriam inaugurar o campo de concentração do Tarrafal. Não são muitas as figuras a percorrer esta obra, a jornalista, Eugénia, o preso que escreve cartas e as atira para o campo da janela do comboio em que segue sob prisão, o rapaz míope que, apesar de menino e míope as vê, decifrando o nome da destinatária, Luísa, de Vale de Éguas, Joaquim, um dos revoltosos, Maria Silvestre, irmã deste, o inspector Seixas e o médico Viegas, etc.
Eis-nos perante uma narrativa dinâmica, rompendo simetrias, propiciando desequilíbrios, anulando proporções, sendo a do amor, mesclando contrários – e não alheado de um contexto político-social -, que ressalta como ilha. Vemo-lo partir de um esboço trivial, da dissolução da sua idealidade e ilusão, para se transfigurar pela mão de uma escrita imaginativa e caudalosa. A carta de Francisco a Maria Silvestre, sua irmã, é disso exemplo: “E vogo nesta jangada de limos apodrecidos, sobre as rugas das ondas num mar sem fúria. Mas o que eu mais desejo agora é a inclemência, voltar para um útero de lama, eu que vim de um ventre que sempre me considerou um hóspede intruso e inoportuno. Já não sei o que é o mundo fora de mim. Vejo vultos, ouço vozes, manipulam-me, puxam-me pelos braços, não dou sinal de mim. Ou dou? Sou um resto de entulho humano, irmã, mais entulho do que humano” (p. 184).
Sendo um romance com princípio, meio e fim, Que Importa a Fúria do Mar deixa-se, porém, abalar pela tentação da desordem interior à Brandão, pela fúria do feminino obscuro em Hélia Correia ou pela torrencialidade de traço violento e sem míngua de falas de Nuno Bragança. Pressente-se na narrativa de Ana Margarida de Carvalho a preocupação da autora em abater fronteiras intertextuais, formais e outras, reduzida a vida a um desgaste, a algumas linhas básicas, economizada a sintaxe em certos momentos, esbanjada noutros. Há algo de crónica tributária da ficção neste romance, que nos dá a ver uma leitora assídua da melhor literatura portuguesa. Basta ler-se as primeiras páginas do livro: “Tersa gente esta, de almas baldias, vontades torcidas pelo frio que aperta, amolecidas pelo sol que expande. Ando aqui a ganhar a morte.” (p.11)
A escrita tanto se detém na ordenação explícita do enredo como vive da explosão de uma organicidade natural que não obsta à imposição de vivências íntimas. Na verdade, para além das figuras centrais que habitam o romance, a Natureza – paisagem e bichos – é personagem que corre diante de nós ao lado de uma investigação histórica aturada. Se são utilizados procedimentos impressionistas e realistas, dir-se-ia o fio romântico a unir as palavras de uma narrativa cujo lado satírico, de aspereza concentrada, se dá a ver enquanto espelho cru de um quotidiano cruel a braços com um esforço humano pertinaz.
É a imobilidade imperturbável do mundo que faz mover a escritora, a barbárie do seu silêncio cúmplice. Talvez por isso suporte o negrume ou o breve júbilo com a força das palavras de registo feroz, construindo um discurso pluristratificado e em constante reconstrução, que emerge tantas vezes da consciência da História e do princípio organizativo da memória. Leia-se, a título de exemplo, este excerto que, a partir da descrição fundida entre corpo e paisagem, atribui pertinência a uma angustiada condição humana: “Os ventos alíseos, do Sul, em rajadas e turbilhões, arrastavam a terra seca. Os homens mastigavam pó ao acordar e ao deitar. Nos cantos dos olhos formavam-se depósitos de cristas amarelas. Noites tórridas de secura, em que os tornados arrancavam as espias que mantinham as lonas, torciam os ferros das armações das barracas, era um desassossego de músculos retesados, dezenas de mãos a manterem o abrigo” (p. 171)
Não obstante tratar-se do seu primeiro livro, Ana Margarida de Carvalho parece estar na posse de uma mão literária que dignifica o mapa ficcional português. Claro que se retrata, ainda que por desvio e obedecendo a alguma lógica temporal, um certo Portugal presente, mas ainda do passado, ao exibir-se um pessimismo esperançoso que nos propicia a abertura de um espaço de leitura empenhado numa visão do mundo sem dó, na reflexão submersamente autocrítica e metatextual e na transfiguração metafórica que os afectos transportam. O “nó de energia” desta fúria do mar reside igualmente na desmontagem de um tipo de romance que, nas últimas décadas, tem vindo a perder, salvo honrosas excepções, o poder devorador da palavra.
Ana Marques Gastão 23-02-2014