Um dos problemas mais urgentes que se colocam à nossa poesia atual diz respeito ao modo como, na generalidade dos casos, poetas nascidos entre fins dos anos 70 e inícios dos 80 dizem da sua visão do mundo por meio do que, a certa altura, se convencionou chamar de “efeito de realismo”. Não quero insistir na consabida problemática do “regresso ao real”. Ruy Belo, Luíza Neto Jorge ou Fiama, em poemas como “Fala de um Homem Afogado ao Largo da Senhora da Guia no dia 31 de Agosto de 1971”, “Jornal de Domingo” e “O Campesinato o operariado”, respetivamente, ou M. S. Lourenço (é reler um poema como “Desenvolvimento”, inserto em Witham Abbey, de 1974), ou Helder Moura Pereira comprovam, para quem dúvidas tiver, que jamais poetas ditos “da linguagem” deixaram de ser poetas realistas.
Cesário Verde ensinou essa lição e, na sua senda, Sophia chamou a atenção para o facto de todo o poeta ter de ser “artesão de uma linguagem”. Só por miopia poética se pode continuar insistindo que consciência artesanal é sinónimo de ouriversaria. Isso é negar a poetas como Nemésio ou Jorge de Sena (cuja narratividade é inquestionável) o alto grau de consciência linguística que neles – e outros hoje menorizados por um gosto ditatorial na poesia – se conciliava com o ato de fazer do poema um ato de comunicação e testemunho ou de reivenção da língua materna. Quando na própria poesia se instaura, mesmo se inconscientemente, uma espécie de auto-censura que impede o rasgo, a invenção, a ousadia de ir contra a moda, então é a própria poesia que imita a ortodoxia que todos criticamos, a estreiteza de visão que todos apontamos em outros campos da vida social.
Vem tudo isto a propósito de dois livros, um de Frederico Pedreira e outro de Margarida Ferra, poetas revelados já nos anos dois mil e que, em Doze Passos Atrás (de Pedreira,) e Sorte de Principiante (de Margarida Ferra), parecem colocar o que escrevem sob a égide de certos procedimentos ou efeitos de realismo primacialmente narrativos, dispensando em absoluto a mediação verbal metaforizante entre sujeito e mundo. Colocam de parte, no mesmo gesto, o que nessa mediação poderia ser trabalho verbal, procura linguística.
Não que essa mediação se anule por completo. O que se anula, mesmo se lidos pelo lado da alegoria (com olhar turvo e deceptivo, uma vez mais), é a capacidade de choque, de surpresa ou de estranhamento. E é este o pomo da questão. Como harmonizar vontade narrativa, ou mesmo certas influências, com a exigência de fazer do poema algo que seja novo, não pelo que se diz, mas pelo como se diz? Dito de outro modo e para sermos claros: se em livros anteriores – é o caso de Frederico – havia um equilíbrio entre vontade narrativa e construção imaginística (que a própria prosa potenciava), há agora uma queda no descritivismo mais imediato.
Mesmo se o olhar do sujeito, em ambos os livros, numa espécie de travelling, se detém a expor as circunstâncias e pretende dar a ver “os ossos mínimos” de um tempo fantasmático, Doze Passos Atrás e Sorte de Principiante dão-nos poemas que, na sua linguagem, na sua temática, nos problemas e visão do mundo que apresentam, poucas diferenças substantivas possuem. O exercício poético cinje-se à reiterada escrita autobiográfica, pelo lado que esse autobiografismo triunfante tem de mais corriqueiro – não porque pudesse ser de outra forma – mas porque se reduz à dicção em si mesma igual aos dias, pequenos charcos (“Ainda seis,/ a lâmina precisa de ser afiada/ ao dia que falta, um golpe/ ao menos na perna esquerda/ – por cada três verticais, um inclinado/ lembra as horas sempre longas e menos./ Socorro-me das tuas palavras […]”, escreve-se em Sorte de Principiante.
Veja-se, por exemplo, que o modo como se lamenta a “falta de quilómetros no mundo” (em M. Ferra) é o modo como se constata, em F. Pedeira, um dia-a-dia que só no passado parece ter sentido: “Regressam os pés lentos ao descampado/ onde só há recordação das noites de circo/ era sempre um princípio de inverno/ o corpo atabalhoado entre casacos// O odor do cabedal, abafos autênticos/ trocados entre os feirantes/ era o dia de aniversário de alguém/ fazia-se um número especial de trapézio.// Joelhos doridos, longe da confusão/ e o meu corpo adormecido, visitando-se/ a si mesmo pela primeira vez,/ temeroso e confuso num silêncio/ tão impróprio para a idade/ despedindo-se de coisas já longe demais.”
Estes versos de Pedreira podiam dizer isto ainda: “Deixei registo de todas as dores,/ humilhações, maus horóscopos, e do que torna o azar fatalidade. […]”. Sucede, porém, que estes versos são de Margarida. Em rigor, formas de dizer iguais e uma visão do mundo similar. Ambos os autores fazem uso de técnicas discursivas, de modos de enunciação (a 2ª pessoa do singular, que tanto pode ser o autor como o leitor) e de um prosaísmo que, por vezes, parece tornar indistinta a autoria. Isso vem sendo comum em imensa gente que agora publica.
É certo que em Sorte de Principiante o efeito de realismo tem, por vezes, um “arranjo”, alguma criatividade (“Mesmo que durante o comboio/ passe em revista o coração”) e certo poder associativo por meio do qual o plano da infância ou da adolescência se mistura com o presente da escrita para evidenciar que houve um tempo em que se foi feliz e que agora, até porque se faz poesia, não. Mas começa a estar estafado o discurso pesaroso, de herbertinanas subtilezas (a propósito de sapatos também se fala do “tédio das mães”), feito de não menos subtis ruínas ou escombros… Nada há de mal em que, numa época, o vocabulário usado esteja presente em diversos autores. O problema é que a esse vocabulário comum se junta uma quase ausência de imaginação. Como dar ao leitor as iluminações com que ele se surpreenda ou se sobressalte?
São dois livros em que os versos, porque não chegam à outra margem, nem sempre chegam àquele estremecimento que gostaríamos de ler e que, no caso do autor de Doze Passos Atrás, tínhamos lido em publicações anteriores. São textos sobre este tempo, sem dúvida. Sobre este tempo poético. Cenas destrutivas, vozes incomodadas com a abjeção de um real torpe, tudo isso vem contando a poesia portuguesa da última década. Podemos lembrar os versos de Pedreira: “Olhamo-nos debaixo/ do manto das chuvas/ e cumprimos todo o tempo à escuta/ uma manhã descontrolada/ em que não pertenço/ não te encontro no papel”. Sintetizam uma visão do mundo comum.
O que se está dizendo, um pouco por todo o lado, é que a poesia, fruto de um tempo menor, não pode, não quer e não sabe como sair do próprio tempo que é o seu. Mas não teria de sair. Bastaria modelizá-lo numa linguagem outra. O problema assim enunciado é grave, pois que se declara, como modo único de esconjurar o real, a poesia que se finge assassina de si própria. Parece dizer-se que só pelo lado prosaico e sentimental, por vezes com certa torrencialidade verbal, se pode estar na crista da onda…
Frederico Pedreira e Margarida Ferra são autores que sabem que a poesia é mais do que o mero desfiar do poema na “frouxidão desta linha reta” a que chamamos vida. Esperemos por outros livros.