No primeiro dia em que se viu sem emprego, João Ricardo Pedro sentou-se à mesa a escrever. Nem chegou a ser uma decisão racional ou a concretização de um plano há muito acalentado. Foi o instinto que lhe indicou o caminho. E não parou. Nos dois anos seguintes, seria o pai que “faz a sopa”, como diziam os filhos na escola, respondendo à habitual pergunta sobre a ocupação dos progenitores. E se as letras nunca caíram na sopa, abundaram nos seus cozinhados literários. É que mal sabiam as duas crianças que, na disciplina diária a que se impôs, João Ricardo Pedro escreveu o seu primeiro romance, O teu rosto será o último, que acaba de vencer o Prémio Leya, no valor de 100 mil euros. É uma história com final feliz.
Certo é que na agitação que tem rodeado a atribuição deste prémio, com muitas entrevistas e solicitações, este engenheiro eletrotécnico, de 38 anos, já começa a ter dificuldade em recordar esse momento que mudou a sua vida. Lembra-se de ter ido pôr a filha mais velha à escola e de, no regresso, no silêncio da casa, se ter lançado na escrita. Na verdade, não tinha história que quisesse contar, apenas a sensação de que seria capaz de escrever uma, se tentasse. Onde foi buscar essa convicção? “É um mistério” -um dos muitos que envolvem os caminhos da criação artística.
O “click” deu-se aos 17 anos, quando se tornou um leitor compulsivo. “A partir dessa idade, passei a devorar livros”, assegura. Para a sua casa convidou muitos autores, que encheram estantes inteiras e a sua imaginação. A título de exemplo, cita Joseph Conrad, Franz Kafka, Marcel Proust, Javier Marías, Juan Marsé ou António Lobo Antunes. O mais marcante, no entanto, acabou por ser Ernest Hemingway. Com o escritor norte-americano descobriu que há sempre “uma pessoa que se esconde por detrás do texto”. E que os livros eram fruto de pessoas que viviam, sentiam, experimentavam, erravam e acertavam. Como ele.
Parece simples recordar os dois últimos anos da sua vida, passados em casa. Mas vendoos em perspetiva, confessa que “não faltaram dificuldades”. A começar pelo tom do livro que tinha entre mãos. Sem a tal história para contar, João Ricardo Pedro não se preocupou com o enredo e avançou sem limitações. A opção mais natural pareceu-lhe escrever na primeira pessoa. Vinte páginas depois, teve a primeira crise: “Já tinham acontecido tantas coisas às personagens que a narração nesse registo era impossível, soava a falso”. A mudança para a terceira pessoa revelou-se um processo “doloroso”. E os problemas não se ficaram por aí. Até à entrega do original a concurso, deparouse com muitos avanços e recuos. Em jeito de explicação, afirma: “Só percebemos que não sabemos escrever quando começamos a escrever”.
Sem professores ou cursos de escrita criativa pelo meio, a solução foi aprender com os mestres, socorrendo-se dos muitos livros que leu. “Sempre que tinha uma dúvida ia ver como se fazia, voltando a ler determinados livros ou passagens com a curiosidade da técnica”, adianta. Embora não encontre marcas no seu romance, José Cardoso Pires foi fundamental nessa aprendizagem. Do escritor português, nascido em 1925 e falecido em 1998, esmiuçou muitos parágrafos, em demoradas releituras, fixando a qualidade dos diálogos e a ironia latente em todas as situações. Acima de tudo, tentou fugir aos tiques de principiantes, como a vontade de mostrar habilidade ou o excesso de metáforas.
Se sempre teve dúvidas sobre a “qualidade” do seu trabalho, a decisão do júri da LeYa, constituído por Manuel Alegre, José Castelo, José Carlos Seabra Pereira, Lourenço Rosário, Nuno Júdice, Pepetela e Rita Chaves, acabou por o esclarecer.
“Abrimos O teu rosto será o último e ficamos com a sensação de que estamos a ler um conjunto de contos. Mas com o avançar da leitura percebemos o modo subtil como essas histórias soltas se ligam”, afirmou o crítico e escritor brasileiro José Castelo, em nome do júri, durante a conferência de imprensa em que se anunciou o vencedor. “No final, essas pontas soltas não se ligam, nem se explicam. Aliás, nada se explica. O leitor termina a leitura com as mesmas interrogações com que começou. Por isso, é um romance que permite um número infinito de interrogações”.
E muitas são também as interrogações que se colocam a João Pedro Ricardo. É que sempre esteve longe de imaginar que a sua vida poderia ser dedicada à escrita. E essa foi uma porta que agora se abriu. Nascido em 1973, na Reboleira (Amadora), passou a infância e juventude em Queluz (Sintra), onde fez todo o seu percurso escolar, primeiro no colégio Pinóquio, depois na Escola Preparatória Monte Abraão e finalmente na Secundária de Massamá. Não foi aluno brilhante, mas sempre mostrou um jeito natural para a Matemática. Com essa certeza, seguiu engenharia eletrotécnica, no Instituto Superior Técnico (IST), em 1991, “mais por vontade de acompanhar os amigos do que por convicção”.
A mudança para Lisboa, como estudante e depois por opção, provocou uma revolução na sua vida. Surge a voragem da leitura, de par com o cinema, o teatro e outras experiências. Durante a universidade, que completou em sete anos, nunca se ficou só pelo IST. Rumava à Faculdade de Belas Artes ou à de Letras, em busca de outras inspirações e interesses. “Conheci pessoas dignas de romance”, diz, hoje, provavelmente já com o filtro da memória de um escritor.
Foram também anos de intervenção política, sobretudo na luta anti-propinas, quando Couto dos Santos e Manuela Ferreira Leite estavam à frente do Ministério da Educação. De resto, essa atenção ao político, ao social e ao bem comum não deixa de estar presente em O teu rosto será o último, na medida em que passa em revista os principais momentos da história recente de Portugal, desde a Guerra Colonial ao 25 de Abril. Acontecimentos e traumas que se refletem no interior de uma família.
Da sua biografia, os anos que se seguiram à licenciatura em engenharia eletrotécnica são de pouca nota. Empregado numa empresa de telecomunicações, passou a viver a velocidade da idade adulta. “Ter tempo para escrever” revelou-se a grande benesse de ter sido despedido, em 2009. Com apoio da família, dedicou-se, de segunda a sexta, à escrita, no escritório ou no café Carcassone, ao pé da sua casa, para espairecer, obrigando-se a uma página por dia. “Era apenas eu, o computador e os livros”. E a música. As 32 sonatas para piano de Beethoven, na interpretação de Alfred Brendel, que comprou numa “extraordinária promoção”, ditaram o ritmo não só da narrativa, como da escrita. “A ligação à música era tão forte que cheguei a reproduzir no teclado a cadência do piano. Só parava quanto os andamentos terminavam”.
A estrutura fragmentária que o júri identificou deve-se em parte a essas sonatas. Numa escuta atenta, João Ricardo Pedrocompreendeu que alguns motivos que Beethoven explorou nas composições de juventude surgiam nos trabalhos tardios, depois de anos sem as utilizar. Assim explica a composição do seu romance, dividido em 32 capítulos com três andamentos cada um. Só para o ano chegará aos leitores lusófonos a “música” que compôs. Até lá, espera conseguir acabar de ler Ana Karenina, de Tolstói, que interrompeu devido ao impacto mediático da atribuição do prémio. E voltar ao seu escritório. Porque este livro não será o último.