Nikos Kazantzakis, no romance The last temptation, que haveria de ser adaptado ao ci-nema em 1988 por Martin Scorsese, renova o mito dos titãs, Epimeteu e Prometeu, aqui simbolizados por um bisubstancialismo, pelo espírito e pela carne, mas também nas figuras de Cristo e de Judas, que têm características muito semelhantes a outro par, pro-tagonistas do livro do mesmo autor Zorba, o grego (O bom demónio, na versão de 1965), também ele adaptado ao cinema em 1964 por Michael Cacoyannis. Uma ressalva no início do filme The last temptation of Christ, não o poupou aos inúme-ros protestos por parte de sacerdotes e diversas organizações cristãs, incluindo The Nacional Federation for Decency, que apelou ao boicote por blasfémia.
Esta será talvez a primeira diferença entre filme e livro: o primeiro parece acicatar alguns ânimos, enquanto o segundo, ainda que sustente a mesma teoria — e até com mais verve e profundidade — passou a vida em relativa tranquilidade nas prateleiras das livrarias e bibliotecas. É certo que o filme, que data de 1988, era na altura uma novidade, ao contrário do livro, mas não parece ser essa a explicação para a exaltação que provoca, uma vez que os protestos foram sendo recorrentes ao longo destes últimos 30 anos. É também verdade que a leitura costuma ser mais exigente em termos de tempo do que o cinema. Os filmes têm, modo geral, mais espectadores do que os livros têm leitores.
Mesmo tendo em consideração as hipóteses anteriores, a conclusão mais provável para as violentas críticas geradas será outra: as imagens têm um poder imediato muito grande e a imagem de um Cristo pouco ortodoxo tem um impacto maior do que a sua descrição literária, assim como a visualização de pornografia tem um impacto muito maior do que a sua congénere literária, e um testemunho verbal terá menos força do que um filme ou fotografia do acontecimento. A imagem parece conter mais verdade do que a palavras e é por isso mais ameaçadora. Citando John Berger, em La apariencia de las cosas, “cada fotografia é, na realidade, um meio de comprovação, de confirmação e de construção de uma visão total da realidade. Por isso o papel crucial da fotografia na luta ideológica. Por isso a necessidade de entendermos uma arma que utilizamos e que pode ser utilizada contra nós” (2014:161)
Não será ironia nenhuma que a crítica ao conteúdo do filme The last Temptation of Christ seja principalmente dirigida a uma cena em especial, em que Kazantzakis concebeu um Cristo vacilante, que é tentado pela sua humanidade: quando crucificado, Jesus imagina o que teria sido a sua vida se tivesse renunciado à condição divina e tivesse abraçado a sua humanidade em absoluto, casando-se, tendo família, filhos. A blasfémia prende-se com a humanização. Este Cristo encarnou o homem vulgar e essa humanidade tão próxima da nossa choca por semelhança e verosimilhança. O Cristo de Kazantzakis é demasiado humano, demasiado real para ser credível enquanto divindade.
Mas não seria essa a causa da encarnação? Deus feito Homem é precisamente um Deus que se aproxima, que se pode tocar. Aquilo que poderia ser chamado de confirmação de São Tomé: a realidade exige ser tocada, exige carnalidade (per carnem, como dizia Tertuliano). O Cristo do cinema é mais carnal do que o do livro e o do livro é mais carnal do que o do credo, mais sensorial. Este fenómeno tem precedentes muito antigos: é a síndrome do segundo mandamento, que proíbe a réplica imagética. A sensorialidade da representação dá-lhe realidade podendo resvalar na iconolatria. Francis Bacon, entrevistado por Frank Maubert, disse, parafraseando Ésquilo, que o “o cheiro a sangue humano não me larga os olhos”.
Esta ideia de o visível equivaler à verdade, à tangibilidade, um passo anterior à carne, à chaga da matéria háptica, faz com que a transposição intersemiótica da literatura para o cinema possa ser vista como fundamentalmente ameaçadora (traz o odor do sangue nos olhos) ou corroborante (quando legitima crenças ou ideias), pois, como escreveu Berger: : “Ser visível era estar aí, fazer visível era fazer esse aí”. J