Joaquin Phoenix, no seu discurso dos óscares deste ano, há poucos dias, afirmou que “é quando damos aos outros uma segunda oportunidade, que nos apresentamos no nosso melhor, quando nos apoiamos uns aos outros, quando não desistimos dos outros por erros passados, (…) isso é o melhor da humanidade.
O grave problema social das baixas qualificações dos jovens
No início de Fevereiro, o Instituto Nacional de Estatística divulgou os números de 2019 do abandono precoce da educação e formação (APEF), um dos mais importantes indicadores da cooperação europeia em educação. A taxa é agora de 10,6%, colocando Portugal a escassas 6 décimas do cumprimento da meta europeia para 2020, objectivo que parecia inalcançável há poucos anos atrás.
O fenómeno de descida da taxa de APEF, nos últimos 12 anos, (de 2007 a 2019, passou de 36,5% para 10, 6%), dá conta, seguramente, da maior capacidade de os nossos sistemas de educação formação reterem durante mais tempo e até mais tarde os nossos jovens. Esta maior participação dos jovens portugueses na educação e formação está por certo relacionada com a melhoria das condições de vida das populações nos últimos anos, e também com um processo sustentado de melhoria dos resultados educativos no país.
Estas boas notícias não podem, no entanto, fazer esquecer o facto de o indicador APEF, particularmente em Portugal, não traduzir toda a realidade das baixas qualificações e vulnerabilidade social dos jovens. Na verdade, a qualidade deste indicador, que depende de um instrumento concebido com outras finalidades, o Inquérito ao Emprego, tem vindo a ser questionada, propondo alguns autores um novo Inquérito à Educação e Formação nas operações do Sistema Estatístico Europeu, que integre outros indicadores para captar os diferentes fatores deste processo4.
Em Portugal, como em geral, na Europa, não existe um conhecimento integrado sobre a situação de qualificação e de integração social e profissional dos jovens. Os diversos indicadores sobre a realidade da vida dos jovens apresentam valores preocupantes: 20% de desemprego juvenil, a 3ª maior taxa na Europa, 30% de pobreza juvenil, cerca do dobro da média europeia e 30% de jovens até aos 29 anos que não completam o ensino secundário (valores de 2018).
Em Portugal, como em outros países europeus, não há ainda grande consciência social acerca do grande número de jovens que estão fora da escola, exigindo medidas de compensação específicas. Reduzir o abandono precoce, assegurando simultaneamente a qualidade das respostas de educação e formação e a integração social e profissional dos jovens não é apenas um objetivo central da cooperação europeia, é um dos mais importantes desígnios nacionais e um importantíssimo indicador da qualidade dos nossos sistemas sociais e da nossa democracia.
As escolas de segunda oportunidade como política europeia
As escolas de segunda oportunidade, a celebrar 20 anos de experiência na Europa, nasceram como uma medida especializada diferenciada de política europeia dirigida a jovens em abandono precoce e em risco de exclusão social. Para além de participarem activamente no trabalho de integração socio profissional de jovens, cumprem vários mandatos, designadamente a renovação pedagógica e organizacional dos sistemas de educação e formação e o alargamento da educação ao espaço público, reforçando a sua dimensão comunitária.
As Escolas de Segunda Oportunidade têm vindo a afirmar a possibilidade de organizar respostas formativas eficazes para públicos mais vulneráveis e resistentes aos processos de formação tradicionais. A Segunda Oportunidade em educação afirma-se hoje como uma proposta de educação inclusiva e holística, que inclui mas não se esgota na dimensão profissionalizante, que acredita que é sempre possível recomeçar e superar experiências de insucesso, tantas vezes traumáticas, desenvolvendo-se não em oposição mas em diálogo e aprendizagem mútua com as vias regulares de educação e formação.
A Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos (E2OM) completa, este ano, 12 anos de intensa actividade, marcada por uma extraordinária e improvável resistência e constantes superações. O projecto, pioneiro em Portugal, mereceu o reconhecimento e validação de várias instâncias nacionais e internacionais, estando iminente a sua integração no sistema público de educação.
A E2OM é uma resposta integrada, que procura intervir nas várias áreas problemáticas da vida dos jovens, criando condições para o desenvolvimento de processos de crescimento e mudança pessoal que invertam trajectos anunciados de exclusão social.
Na E2OM promovem-se aprendizagens significativas e o envolvimento activo dos jovens na formação, na linha da pedagogia freiriana. Revelam-se talentos, tantas vezes clandestinos, deslocando o foco do fracasso para a descoberta do potencial. É uma resposta de transição entre o abandono escolar e a formação e/ou emprego e não uma alternativa aos sistemas regulares de formação.
Um dos elementos estruturantes da sua proposta socioeducativa é a centralidade das artes na (re)vinculação dos jovens. As artes são um poderoso instrumento de inclusão social, quer como factor de atração e de motivação dos jovens, quer como instrumento organizador das diversas actividades da escola, integrando os diferentes saberes e promovendo o diálogo interdisciplinar. Vão ao encontro das capacidades e interesses dos jovens, permitindo-lhes realizar experiências gratificantes e significativas, transformam-se em impulsos para novos processos de aprendizagem e para a realização de sonhos e expectativas. São estratégias de educação não formal, que valorizam os espaços e dispositivos mais próximos da convivialidade e dos interesses dos jovens, sem abdicar da natureza educativa da formação. Desenvolvem competências básicas para a vida, como a capacidade de comunicar e cooperar e, também, o conhecimento de si próprios, da sua relação com os outros e com o mundo.
As actividades artísticas na Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos integram uma dimensão performativa, que retira os jovens da invisibilidade e os mostra como actores e autores da sua própria vida. Ao longo do ano, em todas as áreas de formação, desenvolvem-se processos muito orgânicos de criação, sendo depois os vários produtos artísticos integrados no conceito do espectáculo, que vai tomando forma à medida que se desenvolvem os processos de integração dos jovens na formação. As apresentações artísticas públicas, realizadas em salas de teatro, são um momento alto do processo formativo, desempenhando um papel importante nos processos de reintegração social dos jovens.
Os desafios do futuro
A Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos, referência internacional de Portugal no campo do abandono precoce, foi uma iniciativa social que se desenvolveu com a consciência que a sua viabilidade dependia da possibilidade de se estabelecer no país um enquadramento que garantisse a sua sustentabilidade e abrisse também oportunidades para outros fazerem caminhos idênticos. Esse compromisso ajudou a fundar uma nova política pública para a redução do abandono precoce e a integração social de jovens no nosso país.
O muito aguardado normativo legal, Despacho n.º 6954, foi publicado a 6 de Agosto de 2019, passando a constituir o enquadramento legal da educação de segunda oportunidade. O Despacho reconhece o trabalho pioneiro da Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos, representando um enorme avanço para o trabalho de inclusão social de jovens, em Portugal. Novos desafios se colocam agora ao campo da educação de segunda oportunidade. Por um lado, a preservação do modelo de funcionamento das escolas de segunda oportunidade, testado e validado na experiência de Matosinhos. A este nível importa garantir a autonomia destas escolas, indispensável para assegurar o seu modo de funcionamento e a sua missão, o adequado recrutamento dos seus jovens, a existência de equipas multidisciplinares capazes de promover respostas integradas para problemas complexos e uma oferta formativa diferenciada que permita obter resultados junto de jovens resistentes aos processos tradicionais de formação.
O desenvolvimento desta nova resposta exige mecanismos de regulação e apoio que promovam intervenções coerentes e orientadas para os objectivos da medida:
– Por um lado, uma regulação de pares, que mobilize atores sociais relevantes, pelo aprofundamento do trabalho da Rede Nacional de Escolas e Iniciativas de Educação de Segunda Oportunidade, a E2O Portugal, constituída em 2018 e que conta com mais de 30 instituições de todo o país, apoiando o lançamento de novos projectos e assegurando o seu acompanhamento e monitorização através de um sistema de acreditação e de iniciativas de formação, intercâmbios de experiências e outras ações conjuntas;
– Por outro lado, a institucionalização desta medida no sistema educativo português, através do Programa 2O “Segunda Oportunidade”, justifica e aconselha a criação de uma instância de coordenação, na estrutura do Ministério da Educação, que monitorize e apoie o lançamento desta nova política e rede públicas em Portugal. Esta nova política pública deve constituir-se como referência e unidade de esforços, articulando-se harmoniosamente com o desenvolvimento dos sistemas de educação formação, sendo parte do esforço de qualificação do país.
A formação dos profissionais e a capacitação das organizações é também um desafio crítico para futuro. A formação dos formadores, artistas e técnicos psicossociais envolvidos ativará e desenvolverá recursos, competências e motivação, que lhes permitam facilitar processos de aprendizagem de tipo novo com jovens em abandono precoce. O trabalho de capacitação de organizações permitirá uma compreensão mais profunda da problemática do abandono precoce e da necessidade de desenvolvimento de estratégias concertadas entre os diferentes actores, tendo em vista o desenvolvimento de soluções enraizadas na realidade social dos diferentes territórios.