No meio dos sustos, das apreensões, da tristeza e do desalento ressalta a parte gaga que funciona como refrigério cómico nos lances deprimentes. Vistas as coisas com os olhos de hoje, digo eu, porque, no momento, a percepção do ridículo estaria distraída por outras percepções. Seja como for os efeitos permaneceram, através dos anos, de tal maneira que ainda hoje não posso ouvir “El porompompero”, seja na versão de Manolo Escobar, seja noutras, sem rilhar os dentes. É que passei toda uma noite voando, por estradas de Espanha, caminho de França, a uma velocidade doida, entre luzes de camiões, a ouvir obsessivamente essa rumba. Do outro lado da cassete, a mesma voz, agora lamentosa, queixava-se de que lhe tinham roubado o carro ( donde estará mi carro…). E uma vez, e outra, e outra, e outra.
Ao meu lado, o alegre Pepe gincanava o seu bólide de dois carburadores e ia tirando e enfiando a cassete, com desenvoltura, entre duas mudanças ruidosas. Ele julgava que eu e o silencioso casal madeirense que se afundava no banco de trás estávamos a apreciar aquele festival de entusiasmo. Pepe era um passador de fronteiras, a vida corria-lhe bem, tinha automóvel de carburador duplo, bem equipado, música à descrição, um feitio eufórico, uma vida pela frente (no caso de se desviar a tempo do camião seguinte), que queríamos nós mais, viajantes clandestinos, timoratos e desconfiados? Riscos? Aquilo não havia de ser nada. “Porompompero” para diante.
Estávamos no final de 1973, dias antes eu tinha passado a raia portuguesa a salto, por obra e graça de um passador lusitano e agora estava ao cuidado do desenvolto colega do lado de Espanha. Atravessámos a fronteira francesa de madrugada, já clara, num ápice, e quase não dei por isso. Havia uma ponte, trânsito, uns flics. Ninguém interceptou, ninguém pediu papéis. Seguramente, Pepe sabia que iria ser assim. Ou então, os deuses simpatizaram com aquela exuberância festiva e piscaram-lhe o olho. Acompanhou-me jovialmente à bilheteira, em Hendaya, e comprou-me o bilhete para Paris. Era o ajuste, mas bem escusava de ser em terceira classe e sumapau. E lá marchei eu, pouca terra, pouca terra, a caminho da gare de Montparnasse. Sem papéis, sem documentação válida, apenas com umas moradas anotadas. Era jovem e estava por tudo.
Tinha sido condenado pelo tribunal político de então, dito Plenário, vergonha da magistratura, a dois anos de cadeia. Após a concessão da liberdade condicional soube que regressaria ao serviço militar (a minha prisão tinha-o interrompido, aliás ilegalmente), mas desta vez para a Companhia Disciplinar de Penamacor, desgraduado em soldado raso. A perspectiva era de mobilização africana impreterível e para missões que as autoridades entendessem apropriadas a corrécios. Desminagens, considerava eu, e coisas assim. Depois da tropa, prisão, tortura do sono, obstruções profissionais, humilhações várias, entendi que já era demais. Não tinha condições para continuar. Desandei. Exilei-me. “Migrei”, como se diz agora, de uma forma não inocente.
Poupo-vos às circunstâncias dolorosas da minha partida e também aos pormenores das técnicas clandestinas que me levaram, certa noite, a um incerto encontro, na estrada, para os lados de Leiria. De um carro saíra um sujeito de gravata, elegante casaco de tweed, perguntando-me se eu podia indicar-lhe o caminho para Loures. Respondi qualquer coisa como: “Pois sim, mas tem que passar pela Palhavã”. Senha e contra-senha. Outros sinais coincidiam. Após um breve percurso de carro fui apresentado (em termos vagos, claro) a um passador e começou uma longa e entrecortada viagem até ao extremo-Norte de Portugal. Ainda hoje não sei quem me levou.
Em Paris andei de casa em casa, por arrabaldes medonhos e cinzentos, Ivry, Vitry, dormitórios, torres enormes, rusgas constantes, a sirene das ramonas, uma sociedade crispada e áspera. Podia ser detido em qualquer estação de metro, em qualquer esquina. Eu queria ir para Lund, na Suécia, onde tinha família. Mas faltava-me um passaporte. Conseguir um passaporte falso foi o cabo dos trabalhos. Muito calcorreei, incomodei e demandei. Mas fez-se.
Em Lund, fui logo apoiado pela família, mas também pelas organizações de voluntariado, por elementos da pequena comunidade portuguesa da cidade e, bem assim, pelos serviços oficiais. A minha situação de refugiado, perseguido político, era óbvia e mais que provada. Tive alojamento, uma casa para a minha família, bolsa de estudo, aulas de Sueco e, last but not least, um passaporte. Tudo funcionava à escala humana num pressuposto de civilizado respeito pelo outro que era para todos nós um exemplo e um motivo de reflexão.
Permaneci na pequena e pacata cidade de Lund durante um escasso mês e meio, porque, entretanto, rebentou a revolução de Abril, e o meu lugar passou a ser aqui. Apressei-me a regressar. Mas houve tempo suficiente para contrair para com o país e o povo que me acolheram uma gratidão que perdurou até hoje.
Como todas as nações, a Suécia terá os seus motivos de orgulho. Mas o menor deles não será a demonstração de sensibilidade, atenção, solidariedade, eficiência e respeito pelo semelhante que, nesses tempos, tanto a honrou.
Num momento em que, em certas partes do mundo, se soltaram forças monstruosas e em que um horror trágico persegue populações indefesas, eu gostaria que o meu país também obtivesse essa palma no exercício dum digno sentido de humanidade.